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A narrativa política-eleitoral psicopatológica em torno de Deus, família, pátria, armas e utilização das forças armadas na política doméstica
A propósito do Dia da Independência do Brasil, a ser celebrado no dia 7 de setembro de 2021, algumas reflexões importantes sobre o País. O atual presidente da república elegeu-se com uma narrativa sobre Deus, família, pátria e armas. Estes símbolos merecem a análise mais aprofundada. Deus é símbolo para o cristianismo, o qual projeta-se sobre católicos e evangélicos. Estudos históricos mostram no sentido na manipulação da fé de diversas formas. Em nome de Deus foram cometidas guerras. Em nome de Deus foi praticada a escravidão de índios. Os jesuítas viam os índios como povos sem Deus, por isso a sua catequização forçada. Sobre o tema, há o excelente livro de Roberto Gambini, 2000. Indian Mirror. The Making of the Brazilian Soul, São Paulo: Axis Mundi, o qual explica o sistema de projeção psicológica dos jesuítas sobre os índios, projetando-se todo o mal e pecado sobre os índios.
Em tempos contemporâneos, novas igrejas tornaram-se verdadeiros conglomeradores empresariais, tornando-se seus líderes milionários e alguns até bilionários. Então, de diversas lições históricas vê-se a perversão na utilização de Deus e da religião para propósitos escusos. Há, portanto, o sério risco de manipulação da fé para fins escusos. A religião de um candidato a Ministro do Supremo Tribunal Federal não pode ser condição para o preenchimento de uma vaga. O Estado é leigo, não vivemos em um Estado teológico. No entanto, infelizmente, há mistura no Brasil entre política e religião, algo ruim para ambos os lados. Como disse Jacob Burckhard em sua obra Reflections on history “agora, o poder é, por natureza, diabólico, não importando quem o exerça”.[1] Ao invés de Cristo, por vezes, aparece na história o Anti-Cristo. O falso profeta que em nome de Jesus pratica a barbárie. Por outro, a família é outro símbolo constantemente utilizado na retórica política. Os valores familiares são invocados no jogo político eleitoral, especialmente em questões relacionadas à sexualidade. Em verdade, é para controlar o corpo e o desejo da mulher. O discurso cristão é utilizado para distinguir a tal da “civilização ocidental” de outras civilizações como a islâmica e a oriental.
Outra pauta conexa à família é o nepotismo familiar, representado pela família ligada ao Presidente. Uma família com ambição do poder que se sustenta de mandatos/cargos públicos, financiados com recursos do contribuinte. Em verdade, a pauta da família cristã denota a crise do modelo familiar patriarcal, baseada no predomínio do homem sobre a mulher. A narrativa política-eleitoral predominante parte da família branca, idealizada na figura de um homem e de uma mulher. Ocorre que a realidade não é assim. Atualmente, boa parte da sociedade é integrada apenas por famílias constituídas por mães e filhos. Além disto, as mulheres estão subpresentadas na política, em cargos públicos. O ranking da ONU (Inter-Parliamentary Union) sobre a participação das mulheres no Parlamento mostra que apenas no Congresso brasileiro há representatividade feminina de apenas 15% (quinze por cento). Estes dados são assombrosos e revelam a falta de democratização do parlamento brasileiro, de modo favorável a garantir o acesso à participação feminina. Precisamos de mais mulheres integrando os governos, em mandatos eletivos federais, estaduais e municipais. Por outro lado, a retórica da pátria é o lema adotado pelo governo federal: “pátria amada”. O que é a “pátria amada”? O que isto comunica”? Não se sabe. Não seria, a bem da verdade, pátria armada? A narrativa da pátria é comumente utilizada na retórica militar, para justificar atos de intervenção militar, inclusive para encaminhar soldados à morte em teatros de batalha.
O amor à pátria justificaria o sacrifício da vida individual. Há um componente protofascista nesta retórica militar. A arma é uma espécie de compensação psicológica por complexos de impotência. Assim, na retórica masculina, mãe poderia entregar seus filhos para irem a guerra, em defesa da pátria. Esta retórica militarista é contestada por diversos autores. Sobre o tema, ver: Virginia Woolf. As mulheres devem chorar ou se unir contra a guerra. Patriarcado e militarismo. Autêntica, 2019. Sobre a questão da pátria, Fernando Pessoa, aliás, paradoxalmente, defensor do regime de ditadura militar em Portugal, explica que o princípio patriótico é a negação do princípio liberal.
No século 21, a Pátria deve ser interpretada à luz do novo ambientalismo, sem um meio ambiente protegido e saudável não existirá pátria. É preciso considerar a língua brasileira como um denotativo da pátria. E, também, considerar-se o feminismo como fator de integração fundamental da pátria, fator este não considerado. Outro componente da retórica oficial é a inovação frequente das Forças Armadas. Ora, a participação de militares em governo civil é uma patologia do subdesenvolvimento institucional do país. Militares estão a serviço a defesa nacional e não para servir aos interesses pessoais do governante. As forças armadas estão se desviando de sua finalidade, ao se ocuparem da política doméstica. Forças Armadas detêm o “poder de violência”, por isso jamais poderão participar de governo civil, muito menos participarem de negociações políticas. Militar é treinado para matar e/ou morrer.
No Brasil está a ocorrer a violação ao princípio do controle civil sobre as forças armadas. O militarismo tem um elemento protofascista em sua origem. Sobre a crítica ao militarismo temos nossos pensadores clássicos: Rui Barbosa Contra o Militarismo. Discursos. Político e sobre comércio e navegação. Campanha eleitoral de 1909 a 1910.Rio de Janeiro. Rui Barbosa em sua obra Contra o Militarismo[2] já advertia sobre os riscos do envolvimento militar na política doméstica, com destaque à sua crítica em relação à candidatura militar do Marechal Hermes da Fonseca. Segundo ele: “a candidatura militar, desastradamente armada para salvar as posições de alguns chefes políticos, encerra em si a desgraça irremediável do Brasil”. Já apregoava a incompatibilidade entre uma candidatura militar e a república. E, ainda, nas palavras de Rui Barbosa: “Eis aí, senhores, em condições de relação direta com o candidato militar, indício veemente de que o demônio do militarismo, a obsessão da política servida pela força armada, invadira a administração da Guerra, e se apoderara de seu Ministro”. E, ainda, Rui Barbosa para o risco fatal: “Nunca se viu melhor, senhores, que a política no Exército é a sua dissolução. A título de reorganização das nossas forças de terra, agravou-lhes a desorganização, já pavorosamente adiantada”. Outro autor Olavo Bilac, também no século 20, já apontava sua discordância do militarismo, embora fosse favorável ao engajamento da sociedade civil na defesa nacional. Vejo a radical incompatibilidade entre a participação de militares na política doméstica, seja por influência direta e/ou indireta, algo nefasto ao Estado Democrático de Direito e à Constituição. Percebo que se trata uma patologia de alguns líderes militares tóxicos, baseando em sua ambição de poder, mas que na praticam atos anti-democráticos. Outra retórica populista refere-se ao armamento dos cidadãos.
Ora, se o Estado deve ser o garantidor da segurança pública o porquê do projeto de armamento dos cidadãos. Por detrás da retórica há um projeto de poder baseado na formação e mobilização de milícias civis. A história do armamento de cidadãos nos Estados Unidos mostra a pandemia de violência com armas de fogo. A mídia frequentemente noticia casos de assassinatos em massa, causados em escolas, estacionamentos, mercados e shoppings centers, causados por portadores de armas de fogo de grosso calibre. Além disto, no Brasil, um país com histórico de assassinatos de negros e feminicídio é assustador ver a liberação na aquisição de armas de fogo.
Resumindo-se a narrativa baseada em Deus, família, pátria e forças armadas é do século passado. É uma retórica reacionária baseada na lógica de dominação do grupo masculino sobre a pessoa. Nenhuma democracia avançada no século 21 adota este tipo de narrativa para buscar a coesão social. Países avançados estão ocupados com dignidade humana, direitos humanos, competividade internacional e na prosperidade de sua economia e no bem-estar social, não se ocupam de ideologias ultrapassadas. Enfim, retórica política ultrapassada utilizada pelo Presidente, atual líder tóxico da extrema direita é danosa ao Brasil e ao povo brasileiro. A mitomania é uma espécie de psicose, uma patologia da agressividade e destrutividade e negação do outro. A libertação de pseudo mitomaníacos é a maior prova de maturidade institucional de um povo. Diversamente, a crença no mitômato é um estado psicopatológico no delírio, na farsa e na fraude.
O ocupante da presidência da república adota uma narrativa de pseudologia fantástica, isto é, uma fantasia baseada em mentiradas, negação e inversão da realidade. Ou seja, o líder psicopatalógico é aquele não tem a percepção da realidade como os cidadãos saudáveis psiquicamente. Por transtornos mentais, o líder tóxico manipula a percepção da realidade, conforme seus interesses e/ou seu inconsciente. Sobre o tema da pseudologia fantástica, Carl Jung em seu livro Aspectos do drama contemporâneo (Petrópolis, Editora Vozes, 2012), descreve a ascensão de Hitler ao poder suas técnicas de manipulação das pessoas. Outro autor a se aprofundar o tema, é Luigi Zoja em sua obra Paranoia (London/New York: Routledge, 2017), o qual analisa as lideranças psicopatológicas, baseadas na pseudologia fantástica, entre os quais: Hitler, Mussolini e Stalin. O fetiche quanto às armas é um sintoma psicopatológico. Como diria Nietzsche em sua obra Nascimento da Tragédia : “eis o resultado daquele socratismo voltado à destruição do mito”.[3] A liberdade de pensamento tem o potencial iluminar as trevas e de promover a libertação do ser humano, contra aspectos inumanos de alguns.
Resumindo-se: Deus, Pátria, Armas e Forças Armadas representam símbolo da ambição de poder e gozo pelo poder. É uma lógica da extrema direta o qual despersonaliza o outro, o que interessa o poder pelo poder. Por isso, esta retórica psicológica precisa ser criticada e banida na narrativa político-eleitoral. Nenhum país decente e democrático conta com este tipo de retórica oficial. Este discurso é psicopatológico, macabro, perverso e antidemocrático! O Brasil é maior do que um presidente protofacista. Por isso, a resiliência civil dos cidadãos, instituições, empresas, ao líder presidencial tóxico.
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Ericson Scorsim. Advogado e Consultor em Direito Público. Doutor em Direito pela USP.
[1] Ver Weber, Max. Escritos políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 97.
[2] Contra o militarismo. Discursos. Político e sobre comércio e navegação. Campanha eleitoral de 1909 a 190. J. Ribeiro dos Santos (editor). Rio de Janeiro.
[3] Zoja, Luigi. História da arrogância. Psicologia e limites do desenvolvimento humano. São Paulo: Axis Mundi, 2000, p. 163.
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