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Análise do processo de impeachment aberto pela House of Representatives contra o Presidente dos Estados Unidos Donald Trump

por Ericson Scorsim

dez 03, 2019

Ericson Scorsim. Advogado e Consultor em Direito Público. Doutor em Direito pela USP.

O Presidente dos Estados Unidos Donald J. Trump está sendo investigado  pelo Congresso norte-americano por  abuso do poder presidencial e violação da Constituição, em inquérito que apura a prática de impeachment. A investigação ocorre no âmbito do Comitê de Inteligência e Comitê de Justiça do House of Representatives.  O foco da investigação conduzida pela House of Representatives é verificar se a conduta do Presidente dos Estados Unidos caracteriza abuso do poder presidencial à medida que suspendeu a liberação de verba de assistência militar à Ucrânia, condicionando a liberação à  investigação pelo governo da Ucrânia do ex-Vice Presidente dos Estados Unidos no governo Obama Joe Biden (adversário político de Trump) e seu filho em suposto caso de corrupção. A Constituição dos Estados Unidos define que o Presidente pode ser sujeito ao impeachment, por razões de “treason, bribery, or other high crimes and misdemeanors”. Além disto, a legislação norte-americana qualifica como crime a solicitação de benefício para a campanha eleitoral a nação estrangeira. A remoção do cargo de Presidente dos Estados Unidos depende da atuação conjunta do House Representatives e do Senado dos Estados Unidos. No House Representatives, órgão responsável pela abertura das investigações do impeachment, o Partido Democrata possui a maioria de votos. Por outro lado, no Senado, o controle pertence ao Partido Republicano. A investigação da House of Representatives está baseada em depoimento de informante (denominado whistheblower) que denunciou o risco à segurança nacional dos Estados Unidos, em razão de ações do Presidente Trump que enfraquecem os esforços para deter e conter a influência de governo estrangeiro nas eleições presidenciais dos Estados Unidos. Ficou constatada a influência da Rússia nas eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2016, mediante campanhas de desinformação por redes sociais.  O Relatório Mueller, produzido por investigador independente, apontou esta interferência por governo estrangeiro. Assim, o informante denuncia a utilização do poder presidencial, para fins de interesse pessoal, mediante a pressão realizada pelo Presidente Donald J. Trump em relação ao Presidente da Ucrânia, para investigar seu adversário político na eleição presidencial Joe Biden, ex-Vice-Presidente dos Estados Unidos, no governo Obama. Em conversa telefônica, o Presidente dos Estados Unidos solicitou ao Presidente da Ucrânia que recebesse seu advogado pessoal Rudolf Giuliani, para obter informações sobre investigações a respeito de supostas ligações entre Joe Biden e seu filho Hunter Biden em casos de corrupção na Ucrânia. O filho de Joe Biden participaria de uma empresa de gás na Ucrânia denominada Burisma. Mas, até o momento, não há provas concretas dos supostos crimes que teriam sido cometidos pelos dois.

Como mencionado, acusa-se o Presidente Donald Trump de reter cerca de U$ 400  (quatrocentos) milhões de dólares em relação ao repasse de auxílio militar à Ucrânia, autorizado pelo Congresso, como forma de pressionar o Presidente da Ucrânia para realizar o favor pessoal de investigar seu adversário político Joe Biden.

A Ucrânia está em um conflito armado com a Rússia, e teve parte de seu território invadido pelas forças russas.  Há, portanto, um cenário de guerra entre a Rússia e a Ucrânia, fator de interesse da segurança nacional dos Estados Unidos, à medida que a Rússia é considerada como país adversário dos  Estados Unidos. Assim, os Estados Unidos, mediante decisão do Congresso, decidiram por oferecer verba militar para a Ucrânia para enfrentar a Rússia. Desde 2014, com a saída do Presidente  Viktor Yanukovuch, um aliado do Presidente da Rússia Vladimir Putin, os Estados Unidos  já providenciaram cerca de U$ 1,5 (um vírgula cinco) bilhões de dólares em verba militar para a Ucrânia. A verba militar serve para  a compra de armamento norte-americano como mísseis javelins utilizados contra tanques russos, rifles, granadas, radares, sistemas de comunicações, suprimento médico e treinamento militar e logístico. Assim, a liberação da verba militar norte-americana é essencial para a defesa da Ucrânia e dos ucranianos na guerra contra a Rússia. A Comissão de Inteligência da House of Representatives intimou todos os ex-Embaixadores dos Estados Unidos que atuaram no  episódio na Ucrânia. Também, foram intimados os assessores ligados ao Conselho de Segurança Nacional.

Também, este mesmo órgão intimou o Secretário de Estado Mike Pompeo, ex-Diretor-Geral da CIA, para depor perante a House of Representatives. Primeiramente, o Secretário de Estado Mike Pompeo alegou que não poderia apresentar os documentos solicitados porque o ato envolve o sigilo das informações relacionadas à segurança nacional dos Estados Unidos. Há fase de coleta de provas para processo de investigação para apurar o impeachment.  Foram intimados a depor os Embaixadores dos Estados Unidos na Europa e na Ucrânia, assim como assessores relacionados ao Conselho de Segurança Nacional.

E para agravar o episódio o próprio Presidente Donald Trump sugeriu que a China também investigasse Joe Binden.  A narrativa sobre a política dos Estados Unidos anti-corrupção em relação à Ucrânia foi utilizada pelo Presidente Donald Trump. Mas, segundo o líder da Comissão responsável pelo inquérito sobre o impeachment, na prática, ao suspender a verba militar à Ucrânia e condicionar o agendamento de encontro entre o Presidente da Ucrânia com o Presidente Donald Trump na Casa Branca, à realização de entrevista pelo Presidente da Ucrânia com a revelação de investigações contra o seu adversário político Joe Biden, foi um ato de corrupção. Assim, o Comitê de Impeachment está investigando se a narrativa anti-corrupção foi utilizada para promover a corrupção, mediante o abuso de poder que beneficiaria politicamente Donald Trump. A questão central é, portanto, a investigação sobre a subordinação dos interesses nacionais dos Estados Unidos, no âmbito de sua política externa para conter a influência de governos estrangeiros em suas eleições presidenciais, ao interesse político pessoal do Presidente norte-americano. Debate-se, ainda, que a necessidade para a efetivação do impeachment da caracterização de crime. A questão está dividida, para uns é necessária a configuração do crime (treason, bribery ou other high crimes and misdemeanors, conforme determina a Constituição dos Estados Unidos), para outros não. Nesta segunda corrente, o impeachment trata apenas de uma questão política. Assim, é suficiente a existência de provas de abusos de poder para a abertura e conclusão do processo de impeachment.

Para compreender melhor o contexto do caso

Em 2014, os Estados Unidos aprovaram o Ukraine Freedom Support Act of 2014. Esta lei menciona as medidas a serem adotadas pelos Estados Unidos em relação à Ucrânia. Textualmente, no trecho da assistência civil à Ucrânia, que o Secretário de Estado e a Agência para o Desenvolvimento Internacional, através da Organização para Segurança e Cooperação com a Europa, a National Endowment for Democracy e outras organizações correlatas, devem promover ações para: a) strenghten the organizational and operational capacity of democratic civil society in Ukraine; (b) support the efforts of independent media outlets to broadcast, distribute, and share information in all regions of Ukraine; c) counter corruption and improce transparency and accountability of instituions that are parte of the Government of Ukraine, and d) provider support for democratic organizing and election monitoring in Ukraine.

E, em relação à Rússia, também, há  no Ukraine Freedom Support Act a previsão de ações pelo Secretário de Estado dos Estados Unidos, juntamente, com outras organizações para: (1) improve democratic governance, transparency, accountability, rule of law, and anti-corruption efforts in the Russian Federation; (2) strengthen democratic institutions and political and civil society organizations in the Russia Federation; (3) expand uncensored intern acess in the Russian Federation, and (4) expand free and unfettered acess to independent media of all kinds in the Russian Federation, including through increasing United States Government-supported broadcasting activities, and assist with the protection of journalists and civil society activists who have been targeted for free speech activities”. Em 2017, os Estados Unidos aprovaram a Lei para a Contenção de Adversários e Aplicações de Sanções (Countering America’s Adversaries Through Sanctions Act). A lei contém medidas contra a Rússia devido a ataques cibernéticos, hackeamento de computadores e influência indevida nas eleições presidenciais  de 2016. Há informações de que os ataques teriam partido de grupos pró-Rússia localizados na Ucrânia. O objetivo da lei é conter a atuação da Rússia na Eurasia, isto é, a parte da Europa na fronteira com a Ásia. A lei prevê um fundo público no valor de U$ 250.000.000,00 (duzentos e cinquenta milhões de dólares), a título de assistência militar para a Ucrânia. O fundo dos Estados Unidos de assistência internacional é destinado a medidas de combate à corrupção, melhoria da legislação e fortalecimento do Judiciário da Ucrânia. Em 2018, o Presidente dos Estados Unidos Donald Trump assinou ordem executiva denominada Imposing Certain Sanctions in the Event of Foreign Interference in a United States Election. Segundo a justificativa da decisão há a vulnerabilidade do sistema eleitoral diante da influência por governos estrangeiros ou pessoas estrangeiras que possam enfraquecer a confiança nas eleições presidenciais, mediante ações de infiltração não autorizada na infraestrutura de campanha eleitoral (sistemas de tecnologia de informação e comunicações) e/ou mediante a disseminação de propaganda encoberta e desinformações do público. Assim, o Diretor de Inteligência Nacional deve apresentar relatório que identifique a natureza da influência estrangeira sobre as eleições.  Também, há a previsão das sanções a serem aplicadas às pessoas envolvidas em ações contrárias à legislação norte-americana.

Em 2019, a agência de execução da lei e os serviços de inteligência dos Estados Unidos, inclusive o FBI, já alertaram que ataques russos relacionados à eleição presidencial de 2020 já estão em andamento.[1]

Em síntese, o caso envolve o conflito de interesses, entre o interesse pessoal do Presidente dos Estados Unidos Donald Trump e o interesse nacional relacionado à política externa em tema de segurança nacional, bem como o interesse público da integridade do processo eleitoral, em razão da comprovação da influência da Rússia nas eleições presidenciais dos Estados Unidos.

Para além disto, o episódio mostra o jogo geopolítico da influência e pressão entre governos estrangeiros.  No caso, a utilização do poder presidencial dos Estados Unidos para influenciar o governo da Ucrânia.  E, ainda, de um lado, os Estados Unidos com a sua missão de conter a influência da Rússia sobre a Ucrânia. De outro lado, a Rússia com seus interesses expancionistas na região da Eurasia. E a Ucrânia, o país mais frágil na história, no meio do jogo de forças entre as duas potências: os Estados Unidos e a Rússia.

Algumas lições para o Brasil podem extraídas deste episódio.

Primeiro, a questão do risco geopolítico da interferência por governo estrangeiro em relação a outro país soberano, mediante técnicas de manipulação da opinião públicas, por redes sociais que espalham fake news em campanhas de desinformação. Algo comprovado da interferência da Rússia na eleição presidencial dos Estados Unidos em 2016. Neste aspecto, o Brasil também é vulnerável às técnicas de manipulação da opinião pública em suas eleições.

Segundo, a forma de exercício do poder e estilo de liderança pelo Presidente dos Estados Unidos Donald Trump está sendo questionado em processo de impeachment. Em questão,  o abuso do poder presidencial, ao utilizar da Presidência para obter vantagens pessoais em sua campanha à reeleição, ao solicitar  a governo estrangeiro investigação contra seu adversário político, condicionando ajuda militar à Ucrânia ao repasse de informações. Assim, a comissão de impeachment destaca a diferenciação entre interesses dos Estados Unidos, relacionados à sua política externa, em relação aos interesses pessoais do Presidente da República. A instrumentalização política do governo (Departamento de Estado, Conselho de Segurança Nacional, diplomacia, entre outros órgãos estatais) é contrária à noção de república.

A Segurança Nacional, a Inteligência Nacional, a Política Externa e o Sistema eleitoral não podem manipulados conforme os pessoais interesses do Presidente da República.

O Presidente dos Estados Unidos como Comandante em Chefe das Forças Armadas tem responsabilidade institucional quanto à utilização dos mecanismos de cooperação militar em relação aos governos estrangeiros.

Em debate, nos Estados Unidos a questão dos riscos à segurança nacional e aos serviços de contrainteligência dos Estados Unidos em relação à aceitação de colaboração estrangeira que pode afetar os resultados das eleições internas do País. Em resumo, a compreensão deste caso revela muitas lições de geopolítica, com destaque em relação às questões sobre: a vulnerabilidade dos sistemas eleitorais diante de manipulação da opinião pública por governo estrangeiros e/ou por agentes maliciosos e as técnicas computacionais de disseminação de propagandas e fake news, as estratégias eleitorais em torno das narrativas sobre corrupção e anti-corrupção por adversários políticos, a subordinação dos interesses nacionais em relação à política externa do País aos interesses pessoais do governante, a instrumentalização de órgãos de Estado (Departamento de Justiça, Departamento de Defesa, Conselho de Segurança Nacional, órgãos de inteligência, instituições militares, diplomacia, entre outros), para fins políticos-eleitorais. Todas estas práticas, evidentemente, contrárias às noções básicas de democracia.

 

[1] Harrington, Kent. Quando não se pode confiar no presidente. Valor Econômico, 2.10.2019.