Portal Direito da Comunicação Direito da
Comunicação

Portal Direito da Comunicação

Portal Direito da Comunicação

Artigos

A necessária exclusão de direitos políticos de militares da ativa e da reserva para se preservar da institucionalidade da organização militar. A defesa do Estado Democrático de Direito diante do “partido militar”.

por Ericson Scorsim

ago 11, 2021

Na data de 11 de agosto de 2021, Dia do Advogado, no compromisso como advogado e integrante da advocacia na defesa do Estado Democrático de Direito algumas reflexões sobre a questão militar e o jogo político-eleitoral perverso de manipulação das forças armadas pelo presidente da república, colocando em risco o prestígio e credibilidade da corporação militar.

O Brasil nos últimos anos assiste à intensificação da participação de militares em governo civil. Houve a militarização da política, com a participação de militares em candidaturas. Isto ocorreu intensamente no plano federal, mas também com reflexos nos estados e municípios. Na prática, houve a formação de um governo militar, com um número muito maior de militares do que à época da ditadura militar (1964-1985). Portanto, houve o crescimento da influência militar na política doméstica nacional. Ora, a função primária dos militares, integrantes das forças armadas, é a defesa nacional terrestre, marítima, aérea e cibernética O foco das forças armadas deve ser o inimigo, uma ameaça externa ao País. Deste modo, a função principal para as forças armadas é responder às seguintes questões: quem é atualmente o inimigo do Brasil? Onde está o inimigo? Qual é a intenção do inimigo? Qual é capacidade do inimigo? Qual é a estratégia do inimigo? Quais as táticas do inimigo? Quais os riscos de guerra com o inimigo? Como será o futuro da guerra? Como defender o Brasil no cenário de guerra? Quais os aliados militares do Brasil?  Como destruir o inimigo?

Enfim, são diversas questões relacionadas à defesa nacional. Por isso, a força armada tem como função a identificação das intenções, estratégias, táticas, ações do inimigo. A finalidade da corporação militar é estar preparada para o cenário de guerra. Por isso, ela traça cenários dos “teatros de batalha” para a realização de operações militares. Ocorre que em tempos de paz há, por evidente, ociosidade das forças armadas, excetuadas as hipóteses de atendimento a desastres naturais e intervenções urbanas, em operações de lei e ordem. Há deslocamento das forças armadas para intervenções urbanas, missão para a qual ela não deveria atuar, somente atuam porque as forças de seguranças estaduais falharam.

Ora, se no momentum o Brasil não tem nenhum inimigo externo, qual deve ser a função das forças armadas? Atuar no campo da política doméstica? Evidentemente que não.  Atuar contra inimigos internos? Absolutamente, não. Atuar em apoio a determinada facção política? A resposta também é negativa. Não é legal, nem ética, nem legítima da atuação de militares na política doméstica.  Deste modo, em ambiente de polarização política e divisões político-eleitorais, a manipulação das forças armadas em cenário extremo pode conduzir a uma guerra civil. Uma força armada possui inteligência militar, competências especiais e pessoal especializado.

A função da força armada é a defesa nacional, projetando-se sua força para fora do país e não para dentro. Por isso, é uma anomalia institucional a participação de militares em governos civis, bem como na política eleitoral.

O neomilitarismo presente no Brasil no atual governo é um sintoma patológico do subdesenvolvimento institucional. Para se ter uma ideia, 14 (catorze) dos 17 (dezessete) generais de exército do Alto Comando do Exército ocupam cargos no governo federal. O Brasil precisa avançar para impor o controle civil das forças armadas. Sobre o tema, ver: Scorsim, Ericson. Neomilitarismo, desmilitarização do governo, contenção da influência política das corporações militares e a concepção civil de defesa nacional. Princípio do controle civil das forças armadas: a arma da democracia (www.direitodacomunicacao.com/br). Ver, também, Em defesa da maximização do controle civil das forças armadas e do seu profissionalismo (www.direitodacomunicacao.com.br). São necessárias novas regras de controle democrático da governança das forças armadas, para um regime de maior transparência e accountability. Por isso, a necessidade de reforma constitucional para reorganização das corporações militares  e contenção de sua influência política. Para se ter uma noção do perigo para o Estado Democrático de Direito, nos Estados Unidos há diversas iniciativas para combater movimentos extremistas dentro das forças armadas.

A invasão do Congresso dos Estados Unidos em janeiro deste ano por extremistas acendeu o alerta sobre as forças de defesa nacional. Sobre o tema, ver: US. Secretary of Defense. Memorandum for Senior leadership Comannders of the Combatant Commands Defense Agency and Dod Fiel Diretors, de 9 de 2021.  Conferir, também, o estudo sobre a participação de veteranos militares na invasão do capitólio: “This is War”, examining military experience among the Capitol hill siege participantes, por Daniel Milton e Andrew Mines. E, ainda, há o estudo pela Rand Corporation: “Help, not just hunt, violent extremist in the military”, por Todd Helmus, Ryan Andrew Brown e Rajeev Ramchand, march 2021. Ora, a história military brasileira tem pecados capitais. Dentre eles, o golpe da ditadura militar de 1965-1985, com o apoio dos Estados Unidos aos golpistas.   É certo que a partir daí até 2021 houve o período de estabilidade democrático. Porém, com eleição do presidente Bolsolini há sinais de atos anti-democráticos que colocam em risco às instituições, bem como riscos à integridade do sistema eleitoral.

No Brasil, as forças armadas expulsaram de seus quadros simpatizantes da esquerda. Porém, sempre foram coniventes com membros da extrema direita, o que é o caso da imunidade/proteção conferida ao ex-capitão Jair. Enfim, há dois pesos e duas medidas dentre as forças armadas, punição de membros da esquerda, absolvição de membro da direita. Por isso, é fundamental o amadurecimento institucional das forças armadas para combater também movimento extremistas de direita. A grandeza de um país é medida pela neutralidade política de suas forças armadas, bem como a lealdade às instituições democráticas, o que é evidentemente ultrapassa o presidente da república. Por isso, sugiro uma proposta de emenda constitucional no controle da participação de militares em governo civil. Porém, a medida é insuficiente; é preciso avançar mais. Não é admissível a sociedade civil organizada fique sob a influência das forças armadas em sua política doméstica. Estas são um órgão de Estado, por isso devem servir ao povo brasileiro.

O contribuinte brasileiro é quem financia as forças armadas. Diferentemente da grande maioria do povo brasileiro, um militar tem renda fixa e depois uma aposentadoria robusta.  Além disto, aqui vale a memória e consciência histórica de que o país vivenciou o trágico período do regime da ditadura militar de 1964/1985. Portanto, um golpe militar, com o apoio civil/empresarial, matou a democracia no referido período. Na minha opinião, a título argumentativo, em hipóteses-limite de risco de danos à democracia por novo golpe militar e de desconfiança quanto à atuação das forças armadas, a soberania popular, através da soberania do Parlamento, em processo de emenda à Constituição, poderá inclusive dissolver as forças armadas, até mesmo como uma medida de redução de despesas públicas.

Ora, se não há inimigo externo o porquê se manter uma força armada para atuar somente em questões de política doméstica? Assim, a título hipotético, caso seja necessário, o estado brasileiro poderá contratar os serviços de defesa de outros países e/ou serviços de defesa prestados por empresas privadas. Diante dos fatos acima expostos, entendo necessária a reforma militar de modo a excluir dos agentes militares da ativa e da reserva o direito de votar e o direito de se candidatar em eleições, incluindo-se na medida restritiva militares da reserva.  É uma medida em defesa da democracia brasileira, para conter a influência militar na política doméstica nacional. Com isto, afirmar-se a resiliência civil diante de eventuais abusos do poder militar.   E, também, trata-se de medida para a proteção das próprias forças armadas contra influências políticas-eleitorais. A instituição militar deve ser protegida da influência por políticos. É necessária a proteção à instituição das organizações militares contra as “tentações políticas”. O militarismo e a politização das forças armadas são uma aberração. Por isso, é fundamental garantir-se o profissionalismo, apartidarismo e neutralidade política das forças armadas e sua submissão à Constituição e ao Estado Democrático de Direito.

Em países de democracia avançada vigora o princípio do controle civil das forças armadas. Há linhas claras para a vedação da intervenção das forças armadas na política doméstica. Infelizmente, no Brasil não há ainda a efetividade deste princípio de controle civil democrático sobre as forças armadas.  Olavo Bilac, em sua obra Defesa Nacional, edição da Liga de Defesa Nacional, Rio de Janeiro, 1917, manifestou seu repúdio ao militarismo. E, diferentemente de Olavo Bilac, entendo que o cidadão não é um soldado a serviço da pátria. Soldados são uma categoria especial, integrantes de uma carreira de estado, diferentes dos cidadãos em geral, pois detém o “poder da violência armada”. Justamente, por possuírem o “monopólio legal da violência” é que não podem participar do jogo político-eleitoral. A permissividade quanto à participação de militares em governo civil, bem como em eleições, demonstra a quebra do “fair play” democrático. A Constituição contém alguns limites para o direito político dos servidores militares. Porém, entendo que estes limites são insuficientes para proteger o equilíbrio no jogo político-eleitoral. Ora, se o agente militar participa de uma facção política que conquistou o poder, por óbvio, o grupo político-militar lutará para manter o poder, por isso trabalhará para a reeleição de seu candidato.

Em um país de democracia jovem, como é o caso do Brasil, assiste-se a práticas nefastas de as forças armadas apoiaram um determinado candidato à presidência da república, terem o poder de veto sobre o candidato adversário, militares manifestarem-se em redes sociais em apoio a determinado candidato e/ou contrários a outro político. A resiliência da sociedade civil à interferência de integrantes das forças armadas na política doméstica é um conditio sine qua non para a defesa democrática.

O Brasil e o povo brasileiro precisam confiar em seus militares e sua força armada. Para esta confiança pública é fundamental a neutralidade política dos servidores públicos militares e das forças armadas. Do contrário teremos militares e forças armadas no controle do governo e das instituições democráticas, algo nefasto para um país. A facção militar e/ou “partido fardado”  jamais será o dono dos destinos do país. Uma minoria armada não representa o povo brasileiro, nem define a vontade popular.

A soberania pertence ao povo brasileiro. Por isso, é fundamental a reforma constitucional de modo a se estabelecer o controle democrático sobre a influência militar na política doméstica, mediante a restrição do direito de votar e de ser eleito para militares da ativa e da reserva. A medida serve à proteção da instituição militar contra influências políticas. Esta contenção democrática da influência corporativa militar é uma medida de preservação das instituições, bem como do profissionalismo das forças armadas e a ética militar.  A história militar, com  o devido respeito à instituição, é recheada de golpes e contra golpes, desde Hermes da Fonseca, Getúlio Vargas, regime de ditadura militar, entre os episódios lamentáveis.

No século 21, o Brasil não precisa de um “exército da salvação nacional”. O Brasil precisa de liderança militar democrática, não-tóxica, sintonizada com as melhores práticas de governança militar, accountability democrática, entre outras regras. O Brasil precisa de uma força armada, adequadamente armada, com o melhor da tecnologia global e com recursos humanos altamente treinados.  Por outro lado, a ambição por poder político pode ser algo intrínseco a algum grupo de militares. Mas, a acumulação de poder político, mais poder militar, é gravíssimo ato antidemocrático e que denota abuso de poder e desrespeito à institucionalidade. Em países subdesenvolvidos é comum ver-se golpes militares, com a derrubada de governos e ataques frontais à Constituição. Porém, no século 21, os golpes militares representados pelos assaltos pelo governo são mais sutis e inteligentes, são realizados formalmente conforme as regras da Constituição, conforme explicam os autores Steven Levitsky e Daniel Ziblat Como as democracias morrem. Zahar. É o caso atual do Brasil, representado por um governo militar, aonde há maior número de militares do que na época da ditadura militar. Um presidente eleito com o voto da maioria dos eleitores e que nomeou militares para seu governo. Para uns, o presidente detém o controle sobre os militares. Para outros, é justamente o contrário, os militares é que detêm o controle sobre o presidente.

Enfim, o jogo é duplo, de interesses recíprocos entre presidente e a ala militar.  Assim, o “partido militar” é que teria indicado e apoiado a eleição do atual presidente. Sobre o tema, Souza, Marcelo Pimentel Jorge. Generais arrastam Forças Armadas para a política e governam o país com “partido militar”, artigo publicado na Folha de São Paulo, 17/07/201.

A tese do autor é no sentido que o Alto Comando do Exército é quem traçou a estratégia vitoriosa para a eleição do capitão Jair Bolsonaro. E, ainda, o autor destaca que com ou sem Bolsonaro, o “partido militar” estará no segundo do turno das eleições de 2022. De fato, talvez seja a tese de que Bolsonaro seja o “cabeça de ponte”, no jargão militar, da facção militar seja verossímil, ainda mais considerando-se o contexto das táticas políticas adotadas pelo ex-Presidente Donald Trump, bem como a aproximação entre militares brasileiros e militares norte-americanos. Trump cogitou inclusive invocar a Lei Marcial e pedir a atuação do exército norte-americano, para impedir a posse de Joe Biden. Além disto, há um interesse geoestratégico de aproximação entre militares brasileiros com os Estados Unidos. Basta ver que Brasil e Estados Unidos mantêm um acordo de cooperação militar e há um acordo para exploração da base de Alcântara, localizada no Maranhão. Obviamente, os Estados Unidos pretendem manter sua hegemonia continental e sua superioridade tecnológica sobre a América do Sul. Assim, o Brasil fica a reboque dos Estados Unidos no continente. E o que pior a ala “americanista” do exército fica sob a influência dos Estados Unidos. Enfim, o Brasil como país soberano tem que se preocupar com os riscos de influência estrangeira em seus destinos.

Atualmente, há um contexto de “guerras híbridas” em que potências estrangeiras derrubam governos e elegem novos presidentes, mediante a influência significativa para a opinião pública, por intermédio de redes sociais. Resumindo-se o militar não é um cidadão como qualquer um, ao contrário é uma categoria especial titular do “poder armado”. Por isso, sua atuação na política doméstica é um desvio de função e de finalidade, algo a ser combatido no regime democrático e constitucional. A soberania popular é maior do que qualquer força armada. Esta é um simples órgão de estado a serviço a soberania popular e da Constituição. A corporação militar não está acima do Brasil, nem acima do povo brasileiro, nem mesmo acima da Constituição e da lei.   

É preciso a resiliência civil democrática  a fim de conter o avanço do poder militar sobre a política doméstica. Pior isso, a sugestão ao Congresso, por Emenda à Constituição, para a exclusão do direito de voto e de votado por agentes militares da ativa e da reserva.

* Todos os direitos reservados, não podendo ser reproduzido ou usado sem citar a fonte.

Ericson Scorsim. Advogado e Consultor no Direito do Estado. Doutor em Direito pela USP.