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Balanceamento e contenção de poderes do exército, marinha e aeronáutica: a necessária reforma do sistema de defesa nacional

por Ericson Scorsim

dez 02, 2020

Ericson Scorsim. Advogado e Consultor em Direito Público. Doutor em Direito pela USP.

A defesa nacional é um dos principais aspectos da soberania. Sem defesa adequada e inteligência, o País torna-se vulnerável a qualquer ameaça interna e/ou externa. Mas, a defesa nacional deve ser compreendida à luz dos desafios contemporâneos. Neste contexto, um dos imperativos dos estados democráticos atuais é o controle civil democrático das forças armadas.

As forças armadas devem se subordinar ao poder político da nação. Mas, ao mesmo tempo, deve ser contida a influência política das forças armadas sobre a política doméstica, especialmente a influência do exército, a bem da nação.  O foco do presente artigo é mostrar o exercício do controle civil democrático, mediante ações de balanceamento interno de poderes entre exército, marinha e aeronáutica. A título ilustrativo, entre as nações e em questões de geopolítica, há as medidas balanceamento de poder e de contenção de poder entre as nações. Uma nação com mais poder, no caso os Estados Unidos buscarão ações de balanceamento de poder na Europa e Ásia, mediante a contenção de outros poderes como a Rússia e a China. Ou seja, o poder promove a contenção de outro poder, já que as regras no direito internacional não são muito eficazes para promover o balanceamento de poder. Como último final, a guerra é o instrumento de contenção de poder de outra nação.

Assim, no caso do 5G, os Estados Unidos estão adotando todas medidas para conter a expansão da influência da China, através da Huawei. Assim, o governo norte-americano adotou o programa denominado Clean Path (Caminho limpo), o qual bane as empresas chinesas de fornecerem tecnologia de 5G nos Estados Unidos, inclusive veta-se a presença da tecnologia em lojas de aplicativos, infraestruturas de computação em nuvem e redes de cabos submarinos.  Em última declaração da rede de inteligência Five Eyes (Estados Unidos, Reino Unidos, Austrália, Canadá e Nova Zelândia), inclusive se posicionou sobre a questão de Hong Kong. Por isso, a pressão dos Estados Unidos sobre o Brasil na questão do 5G. Assim, o poder hegemônico pretende manter sua influência em determinada região geográfica do planeta, mantendo o status quo. Deste modo, adotará medidas de preservação do status quo, inclusive de balanceamento mediante a contenção do avanço de outras nações.[1]  Em outras palavras, o poder hegemônico dita as regras sobre as áreas de seu entorno geoestratégico, áreas periféricas de interesse de sua segurança nacional. Dito isto, retornando ao nosso tema, na história brasileira verifica-se a hegemonia do Exército sobre as demais forças, quais sejam: a marinha e aeronáutica. Por séculos, o exército tem sido o protagonista na política doméstica nacional.  

Nos regimes militares da ditadura houve a plena participação de generais no governo. Um governo militar de generais.  Equivocamente, a tradição militar tem sido o veto a candidaturas de presidentes da república, a oposição à posse de presidentes eleitos, o apoio a governos e/ou oposição a governos eleitos. Além disto, é comum o exército se valer de solenidades públicas para outorgar condecorações para personalidades com engajamento político. Aquilo que deveria de considerado uma anomalia (participação de militares na vida política) é percebido como normal. Ora, estas práticas são ofensivas à Constituição e à democracia. São necessárias medidas para alterar este status quo de hegemonia do exército no sistema de defesa nacional. Neste aspecto, o exército tem sido a primeira força. A marinha a segunda força. A aeronáutica é a terceira força. Ora, há hierarquia entre as forças armadas? Acredita-se que não deveria haver, mas na prática o exército é superior à marinha e à aeronáutica. Há um sobrepeso do exército dentro das forças armadas.

Na perspectiva da Constituição da República, há a paridade entre as forças armadas. Porém, na prática, vemos o sobrepeso do exército na defesa nacional e perante a sociedade brasileira.  Atualmente, a história se repete, mediante a participação de militares em governo civil, especialmente a presença maciça do exército.  Os maiores símbolos desta participação política do Exército são representados pelo presidente da república e vice-Presidente, um capitão (titulação obtida apenas após a sua reforma), e de um general da reserva. E o que mais grave é a incitação às manifestações de apoio a intervenções militares por partidários do Presidente da República. Esta é a maior prova da influência política do exército no destino da nação, algo que comprova o subdesenvolvimento nacional. Este é um sinal de atraso na maturidade política da nação, ainda mais considerando-se a história brasileira marcada pela ditadura militar. Uma nação que não aprende com seus erros e busca corrigi-los está condenada ao eterno retorno do tema de seu subdesenvolvimento institucional.  Por isso, acredita-se que o exército, conscientemente ou inconscientemente, adota medidas de reação ao sistema político para manter seu status quo na vida doméstica nacional, em detrimento da institucionalidade do sistema de defesa nacional. Ora, se o sistema de defesa nacional é caracterizado por ser tripolar; não é possível que um dos polos desta equação militar seja predominante sobre os demais. Se que bem o estado-maior das forças armadas busca dar uma aparente versão de equilíbrio e de legitimidade, na prática, percebe-se nitidamente toda a ação do exército do fora dos quartéis, inclusive em campanhas “cívicas”, que representam verdadeiras operações de influência da opinião pública.

Enfim, pretende-se mostrar que o desequilibrium dentro das forças armadas, com a predominância do exército é prejudicial ao sistema de defesa nacional.

As forças armadas dependem do equilíbrio dinâmico para garantir a paridade entre as três corporações militares. Uma força armada não pode ter mais peso político do que a outra. Deste modo, é essencial para a democracia a contenção da atuação política das forças armadas na vida política nacional, especialmente é necessária a contenção da atuação do exército.[2] Neste contexto, o Ministério da defesa foi criado com a missão de integrar as forças armadas, em prol de sua institucionalidade a serviço da defesa nacional.[3] A princípio, o Ministério da Defesa deveria ser ocupado por um civil e não por militares. Por isso, a ocupação deste cargo por um militar representa um desvio da finalidade institucional do Ministério da Defesa, em tempos de paz.  Além disto, o Ministério da Defesa não poderia encampar apenas um dos polos das forças armadas, isto é, pender para o lado do Exército. Entendo necessária a reforma do sistema de defesa nacional, de modo a garantir a plena isenção do Ministério da Defesa na gestão da defesa nacional.

A Defesa não é um tema de exclusividade dos militares. Muito pelo contrário, é um assunto de interesse de toda a sociedade brasileira. Falta liderança civil no comado na Defesa, com compromisso democrático com o controle civil das forças armadas.  Falta liderança militar que compreenda o equilíbrio interno entre as forças armadas. Como é notório, as forças armadas são órgãos de Estado e não de governo. Por isso, militares não podem participar de governo civil. Por esta razão os militares devem ser apolíticos e apartidários. Além disto, as forças armadas devem adotar prática de autocontenção de seu poder.  Enfim, há limites constitucionais que restringem a atuação de militares em questões da política doméstica nacional, caso contrário haverá a subversão da ordem democrática, definida na Constituição da República. Algumas considerações sobre a arquitetura do sistema de defesa nacional. As forças armadas representam a “espinha dorsal” do sistema de defesa nacional. Deste modo, exército, marinha e aeronáutica são as instituições republicanas responsáveis pela defesa nacional. Na visão clássica, as forças armadas foram organizadas e treinadas para defender a nação contra ameaças externas, assim buscavam combater inimigos estrangeiros. Outra interpretação sugere que as forças armadas devem, também, atuar em ameaças internas.

O grave problema desta segunda tese é colocar as forças armadas no epicentro de questões internas urbanas e rurais, para as quais elas não deveriam atuar. Exemplo: a atuação das forças armadas em ações de combate ao narcotráfico. É compreensível a atuação das forças armadas em questões de fronteira. Porém, a atuação corriqueira dentro de cidades é algo difícil de se justificar, diante da estruturação constitucional do sistema de segurança pública, algo distinto do sistema de segurança nacional. A tendência da participação do exército em questões domésticas é a população civil sofrer abusos. Além disto, o sistema de defesa nacional está organizado baseado na defesa dos territórios brasileiros: terrestre, marítimo e aéreo. O exército tem por missão a defesa do espaço terrestre. A marinha tem por incumbência a defesa do espaço marítimo. E a aeronáutica compete a defesa do espaço aéreo. Neste contexto organizacional, o exército mantém sua projeção de poder terrestre, atuando em todas as regiões do Brasil: Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Há quartéis e comandos militares distribuídos em todas as regiões brasileiras. Acontece que o Brasil é um país continental, com vasta extensão de seu território marítimo. Por isso, a Marinha serve como fator de defesa nacional deste território marítimo. Há bases navais distribuídas por todo o território nacional.

No novo Plano de Defesa Nacional do Brasil, considera-se como área geoestratégia de defesa a denominada Amazônia Azul, área do Atlântico Sul, desde a região norte, nordeste, sudeste e sul. Na visão geoestratégia de defesa nacional, debate-se a respeito da concepção mais adequada ao Brasil. Há uma linha de defesa contemporânea que advoga por um sistema de defesa do Brasil, baseado na projeção de poder naval sobre o Atlântico Sul. Esta linha de defesa de fortalecimento da Marinha do Brasil faz todo o sentido, por diversas razões históricas. Primeiro,  lembre-se que os Estados Unidos foram alvo de um ataque por terroristas em 2001. Aviões foram dirigidos contra as torres Gêmeas em Nova York e contra o Pentágono. Neste tipo de ataque, mostra-se a fragilidade das forças armadas diante de um ataque desta espécie. Por isso, a necessidade de readequação dos sistemas de defesa à nova realidade das ameaças por inimigos. Segundo, lembremos da segunda guerra mundial: o Japão atacou os Estados Unidos no porto de Pearl Harbour, localizado no Havaí, em 1941, com torpedos disparados por aviões.[4] Embora os sistemas de inteligência militar dos Estados Unidos tivessem detectados os riscos de ataques do Japão, não houve reação para impedir o fato.

Em síntese, este episódio histórico revela a importância de um sistema de defesa por aviões, navios e submarinos para repelir um ataque em áreas marítimas. Terceiro, durante a Segunda Guerra Mundial, o Brasil teve alguns de seus navios mercantis atacados por submarinos alemães.  Quarto, na Guerra das Malvinas, a Argentina decidiu por invadir as Ilhas Malvinas, território alvo de disputa com o Reino Unido. Assim, o Reino Unido deslocou sua Marinha e Força Aérea para a região das Malvinas, mediante o apoio logístico nas Ilhas Ascensão e Marshall, localizadas no Atlântico do Sul.

A propósito, os Estados Unidos apoiaram o Reino Unido na disputa, inclusive colaboraram com serviços de inteligência, cedendo imagens da NASA e serviços de previsão meteorológica. O Reino Unido chegou inclusive a encaminhar um submarino nuclear para a região do conflito. Quinto, curiosamente, o Reino Unido possui um dos maiores territórios ultramarinos (áreas econômicas), localizados no Atlântico Sul. O governo britânico prospectou petróleo, minerais e alimentos na região. Por isso, o Atlântico Sul é de interesse geoestratégico do Reino Unido na medida que possibilite o controle das rotas marítimas na África (Cabo da Boa Esperança, na África do Sul) e o Cabo Horn no extremo sul da Argentina. Sexto, a Antártida é um dos maiores territórios do mundo, sendo frequentada por diversas potências globais.

O Brasil não tem navios preparados em número suficiente para ocupar a Antártida. A Antártida é geoestrategicamente relevante devido ao aquecimento global, o qual repercutirá na geopolítica global. Além disto, a região é observada por satélites. Sétimo, no Atlântico Sul, foi descoberta a maior reserva de petróleo do mundo na camada do pré-sal. Por isso, a necessidade urgente do país capacitar sua Marinha e garantir a sua projeção de poder naval, para fins de dissuasão. Assim, com frota naval adequada o Brasil será capaz de garantir zonas de negação de acesso. Neste contexto, a criação de uma frota de submarinos nucleares é um caminho geoestratégico interessante para fortalecer sua capacidade de dissuasão de ataques por inimigos. Oitavo, no Atlântico Sul, há uma rede de cabos submarinos que interligam o Brasil aos Estados Unidos, à África e à Europa. Por isso, a necessidade de a marinha estar equipada com os melhores recursos de defesa para a proteger a redes de cabos submarinos. Um eventual ataque à rede de cabos submarinos pode comprometer as comunicações do Brasil. Nono, os Estados Unidos ativaram sua quarta frota com atuação no Caribe e Atlântico Sul. Este é um fato que deve ser ponto de máxima atenção por parte das autoridades de defesa nacional.  Registre-se que os Estados Unidos possuem uma infinidade de agências militares com elevada capacidade de atuação global: National Security Agency, National Geospatial-inteligence Agency (NGA), National Reconnaissance Office (NRO), National Oceanic and Atmospheric Administration, (NOAA), National Aeuronautic and Spacial Administration (NASA0  entre outras.[5] Além disto, os Estados Unidos mantêm um sistema de inteligência global, denominado Five Eyes, uma aliança com Reino Unido, Canadá, Nova Zelândia e Austrália.[6]

Em síntese, um país sem poder naval não consegue se defender.[7] Por isso, o Brasil tem que aperfeiçoar o seu sistema de defesa, mediante o fortalecimento de sua Marinha. O Brasil não tem navios porta-aviões suficientes para defender seu território marítimo e suas riquezas naturais.  Também, ainda o Brasil não conta com submarinos suficientes para controle seu território marítimo. Por outro lado, a aeronáutica do Brasil foi instalada somente no século 20, diversamente o exército e a marinha são mais antigos. A Força Aérea brasileira tem um papel fundamental na defesa nacional.

Por isso, foi fundamental a aquisição dos aviões modelos “caça” no patrulhamento do espaço aéreo nacional. Outro avanço é o desenvolvimento de aviões de transporte de transporte cargas, inclusive objeto de exportação para outros países. Relembre-se que a Embraer sempre foi considerada na geoestratégia de defesa nacional, como fator de propulsão da indústria de defesa.  Porém, nas últimas décadas, não houve o necessário apoio governamental e empresarial para a ampliação de seus projetos. O Brasil tem dificuldade histórica na defesa de suas empresas brasileiras, ao contrário dos Estados Unidos. Note-se que o espaço aeroespacial é o novo front da batalha geopolítica entre as nações. O espaço sideral é integrado por uma constelação de satélites, com os vários usos.

Há satélites espiões, a serviço da inteligência militar. Existem satélites meteorológicos que fazem a previsão do clima em todo o globo. Há satélites para comunicações militares. Satélites com funções de telecomunicações e navegação, utilizado no sistema GPS. Alguns destes satélites, inclusive, são movidos com energia nuclear. 

O Brasil firmou com os Estados Unidos o acordo de cooperação quanto à utilização da base de Alcântara pelos norte-americanos. No acordo não há transferência de tecnologia para o Brasil. Por outro lado, o Brasil não conta com sistema de posicionamento por satélite próprio, por isso depende da tecnologia de GPS dos Estados Unidos. Esta dependência tecnológica do Brasil da tecnologia dos Estados Unidos deveria ser revista na perspectiva da defesa nacional. O Brasil sequer conta com satélites meteorológicos suficientes para atender às suas demandas. O Brasil pode ser espionado por satélites. Mas, não há mecanismos para se defender deste tipo de espionagem. Por isso, a necessidade de termos um sistema de defesa aeroespacial para nos defendermos contra satélites espiões de potências estrangeiras.  Neste aspecto, a denominada astropolítica é o campo da nova geopolítica na era espacial.   Esta nova disciplina busca compreender a relação entre a terra e o sistema espacial, com a definição de geoestratégias políticas pelos países. Assim, há estudos das órbitas satelitais, os mecanismos para a proteção de ativos aeroespaciais, as formas de exploração espacial, as áreas geoestratégicas espaciais, entre outros temas. Registre-se que os Estados Unidos ativaram um novo comando militar denominado Força Espacial, independente das demais forças. Além disto, os Estados Unidos consideram o espaço cibernético como o quinto território a ser objeto de atenção de sua defesa nacional.

No Brasil, a responsabilidade quanto à defesa nacional, através do espaço cibernético, foi atribuída ao exército. Não sabe, até o momento, do acerto deste tipo de atribuição ao exército de responsabilidade quanto à defesa cibernética. Trata-se de mais uma medida de concentração de poderes em mãos do exército. Talvez, fosse o caso de se criar um comando cibernético dentro do Ministério da Defesa, sem a subordinação ao exército, marinha e/ou aeronáutica. Finalmente, todo o sistema de defesa nacional deve ser geoestrategicamente pensado no contexto dos grandes  riscos do século 21: a hegemonia militar dos Estados Unidos nas Américas, armamento nuclear das grandes potências (e ameaças de apropriação de armas nucleares por grupos terroristas),  tecnologias navais e aeroespaciais, capacidade dos mísseis nucleares intercontinentais, tecnologia de defesa contra armas nucleares, o contexto de criação de armas hipersônicas,  a astropolítica, as comunicações e o sistema de criptografia e computação quântica, consciência situacional dos teatros de operações militares (situational awareness),  formatação de unidades militares menores para missões em qualquer lugar o globo, capacidade de reconhecimento, de vigilância e ofensiva via drones, submarinos tripulados e não tripulados, veículos subaquáticos, satélites movidos com energia nuclear, capacidade computacional quântica, inteligência artificial, tecnologia de rede de 5G,  compartilhamento de sinais de inteligência,  guerra eletrônica, riscos de ataques cibernéticos contra infraestruturas nacionais críticas, biodefesa nacional diante de pandemias, poder da inteligência, integração da indústria civil-militar, entre outros aspectos.  A pandemia, um inimigo invisível, tem o poder letal sobre milhares de vidas humanas. Por isso, a necessidade uma política de biodefesa nacional à altura dos desafios das pandemias. Por outro lado, a tecnologia aeroespacial utilizada em satélites é relevantíssima. Isto porque a tecnologia de satélite é praticamente a mesma do que aquela utilizada no lançamento de mísseis.

Portanto, o país que domina a tecnologia de satélite, por óbvio domina, a tecnologia de lançamento de foguetes. O Brasil precisa acordar seu sistema de defesa para o seguinte: qual é o nosso sistema de defesa nuclear contra armas nucleares? Esta é uma das mais importantes questões do século 21. Qual é o nosso sistema de defesa de mísseis intercontinentais nucleares? Qual é nossa defesa diante de satélites, aeronaves, navios e submarinos espiões? Qual é a nossa geoestratégia de defesa no espaço sideral? O nosso sistema de inteligência nacional tem capacidade técnica para espionar as grandes potências? Qual é o nosso sistema de defesas das redes de cabos submarinos? 

Diante deste contexto, há duas visões de defesa para o Brasil. Uma, a submissão do sistema de defesa aos interesses hegemônicos dos Estados Unidos na América do Sul. A visão geoestratégia dos Estados Unidos é clara: qualquer país que pretenda desafiar sua hegemonia é alvo de medidas de balanceamento de poder, conforme lições de Hans Morgenthau, Nicholas Spykman e George Kennan. Por isso, no pós-segunda guerra mundial, os Estados Unidos adotaram medidas para conter a Europa, bem como para conter a ex-União Soviética. No século 21, foram adotadas medidas de contenção no Oriente Médio (Guerra do Iraque), bem como na Ásia (Afeganistão). Mas, o principal alvo da atenção da política externa dos Estados Unidos no momento é a China. No contexto, desta geoestratégia de poder os Estados Unidos utilizam de suas bases navais e áreas localizadas na Europa, África, Oriente Médio, Ásia e Oceania. E mais, durante a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos viam as do litoral do nordeste como geoestrategicamente de interesse de sua segurança nacional. De um lado, a proximidade do litoral nordestino com a África. De outro lado, a proximidade com o Mar do Caribe.  Assim, as bases aéreas nesta região poderiam servir como ponto de alavancagem para operações na África e Europa.  Havia o temor norte-americano da presença de forças da Alemanha, aproveitando-se de sua influência cultural no sul do Brasil, pudessem invadir o Brasil e, posteriormente, adotar uma estratégica de cerceamento dos Estados Unidos no Atlântico.[8] 

Registre-se que esta visão por décadas foi adotada pela Europa, no pós-segunda guerra mundial. A OTAN  (Organização do Tratado do Atlântico Norte) foi o mecanismo criado para a defesa da Europa, a partir dos interesses dos Estados Unidos. No século 21, a Europa está revendo esta posição geoestratégica de defesa diante dos riscos dos Estados Unidos abandonarem a OTAN. Por isso, a União Europeia está criando unidades de defesa, baseado no interesse europeu. Além disto, com a saída do Reino Unido da União Europeia, todo o sistema de defesa da Europa está sendo reavaliado. Há interesses comuns entre Estados Unidos e Europa na defesa continental, porém há também interesses divergentes. Neste aspecto, a linha geoestratégia que defende a extensão do sistema de defesa do Atlântico Norte para o Atlântico Sul. Por outro lado, outra linha geoestratégica é mais afinada com a plenitude da soberania nacional do Brasil, ao advogar por um sistema de defesa do Atlântico Sul, com alianças geoestratégicas com os países do arco continental sul, mais os países africanos. Há, ainda, quem sustente uma aliança inclusive com a Austrália, uma visão de defesa no hemisfério sul.  Registre-se que parte do exército brasileiro está sob forte influência dos Estados Unidos.  Também, a elite econômica é influenciada pelo poder geocultural e poder econômico dos Estados Unidos. A propósito, o General Golbery do Couto e Silva defendia este alinhamento geoestratégico do Brasil aos Estados Unidos, no contexto do pós segunda guerra mundial e da guerra fria entre os Estados Unidos e ex-União Soviética.[9] Diante do contexto geopolítico global da disputa entre Estados Unidos e China pela liderança global, entendo que o Brasil há com prudência buscar uma caminho geoestratégico de neutralidade, para evitar danos à sua economia.

Explicando melhor o contexto. Observe-se que a disputa entre as potências militares globais cria como alvos terceiros países. Por exemplo, Cuba, país próxima ao “quintal” norte-americano é o símbolo da disputa ideológica entre Estados Unidos (e seu modelo de exportação do capitalismo e a ex União Soviética (a exportação de seu modelo comunista), no século 20. A disputa da guerra fria levou à ampliação do arsenal nuclear dos dois países. Venezuela é outro exemplo da disputa geopolítica entre Estados Unidos e Rússia e China. No século 21, Taiwan, também próxima ao “quintal” norte-americano é o símbolo da disputa pela liderança global entre Estados Unidos e China. Este país tem pouco território marítimo, comparando-se com a extensão territorial terrestre. Por isso, a China tem planos de avançar na exploração de recursos econômicos no território marítimo. De outro lado, os Estados Unidos, juntamente com os países fronteiros com a China, buscam alternativas para conter a expansão da China no denominado Mar Sul da China. Em razão disso, os Estados Unidos estão armando os países vizinhos à China, seus aliados. A Índia, por exemplo, avançou no seu sistema de defesa naval, com ampliação de sua frota de navios. Também, estão deslocando sua frota naval para bases militares próximas à Taiwan. A China busca ampliar sua frota naval para melhor sua defesa nacional. Esta área do Mar Sul da China pode ser o epicentro da Terceira Guerra Mundial. Por isso, toda a atenção do mundo para o que acontece nesta região do globo.

As nações deveriam manter o sinal de alerta para todos os esforços máximos para a pacificação desta região do planeta, em busca da paz entre Estados Unidos e China. Retornando-se à questão das relações entre Estados Unidos e Brasil. O Brasil não representa uma ameaça aos Estados Unidos. Também, os Estados Unidos não representam uma ameaça aos Estados Unidos. Mas, obviamente, que os Estados Unidos projetam seu poder e sua influência sobre o Brasil, na defesa de seus interesses.  Certamente, a mentalidade de brasileiros “colonizados” buscará o apoio dos Estados Unidos. Mas, por óbvio, o interesse do Tio Sam não representa o interesse do Brasil. Embora a China seja um dos maiores parceiros comerciais do Brasil, por óbvio que os interesses dos Brasil são diferentes dos interesses da China. O Brasil se quiser manter um projeto de nação soberana, com desenvolvimento nacional, deverá adotar um caminho baseado em suas raízes, riquezas, potencialidades e sua cultura diversificada. Neste contexto, há o potencial inclusive para o desenvolvimento de uma indústria de defesa nacional, com parcerias internacionais. Neste aspecto, uma alternativa é a realização de parcerias entre os setores público e privado de defesa. Por isso um caminho interessante talvez seja a reformulação do sistema de defesa de modo a incentivar a “privatização” do setor. Ou seja, o chamamento da iniciativa privada para participar da indústria de defesa.  Sem inovação no setor de defesa, bem como a reforma do sistema de compras de equipamentos, dificilmente, será possível modernizar o sistema de defesa nacional. Também, sem novas doutrinas militares adequadas ao século 21, dificilmente, o Brasil conseguirá manter um sólido sistema de defesa nacional, baseado em novas tecnologias e treinamentos militares eficientes. Estados Unidos e China adotam esta linha estratégia de integração civil e militar no setor de defesa. A propósito, o governo Trump, como um dos seus últimos atos, decidiu por proibir investimentos norte-americanos em empresas chinesas que tenham ligações com o Exército da China. No setor de defesa, há diversas oportunidades em contratos de fornecimento de tecnologia militar para as forças armadas, desde radares, softwares de inteligência militar, equipamentos de comando, controle, reconhecimento e vigilância, equipamentos de radiofrequências, armamento com visão computacional noturna, veículos subaquáticos, drones, satélites, redes de 5G privativas, equipamento de criptografia, computadores quânticos, entre outros.  Em síntese, não há sistema de defesa soberano sem uma economia sólida e um Estado forte e eficiente. Ora, toda estratégia de defesa depende da análise dos fins a serem alcançados e respectivamente dos meios.  Assim, talvez seja chegada a hora da reforma do sistema de defesa, de modo a se pensar na redução do tamanho das forças armadas, criando-se unidades militares mais ágeis e enxutas e, especialmente, reduzindo-se as despesas com o pagamento de pessoal e pensões. Este é um ponto nevrálgico das forças armadas contemporâneas, redução de custos e eficiência operacional. Por fim, advoga-se, aqui, pela paridade entre as forças armadas, buscando-se a ruptura com eventuais “hierarquias” que impliquem a prevalência do exército sobre a marinha e aeronáutica, no sistema de defesa nacional. O sistema de defesa nacional requer unidade de comando entre as forças armadas. Requer-se organização e decisão unificada sob a responsabilidade institucional do Ministério da Defesa. Em razão disto, é incompatível com a natureza do cargo de Ministro de Defesa, em tempos de paz,  a nomeação de militar. De lege ferenda, esta proibição de nomeação de militar para o cargo de Ministro da Defesa deve ser estabelecida, para se prestigiar o princípio do controle civil sobre as forças armadas. Com a palavra o Congresso Nacional sobre a reforma do sistema de defesa nacional. O atual status quo de predomínio agentes do exército no Ministério de Defesa não é saudável para a institucionalização das forças armadas e sua profissionalização. Por isso é fundamental “desmilitarizar” o cargo de Ministro da Defesa.  Sua vocação é garantir a unidade de comando e a integração e o equilíbrio entre as forças armadas.  Além disso, a soberania do Brasil não pode pender sempre o balanço para a defesa terrestre. Há muito a ser feito na defesa aeroespacial e defesa marítima.  O balanceamento de poderes entre exército, marinha e aeronáutica representa a oxigenação do sistema de defesa.

A concentração de poderes nas mãos do exército não é saudável para a democracia e para o sistema de defesa. Igualmente, não é saudável para a democracia que o exército participe da vida política nacional. Outro ponto digno de nota é o controle democrático de eventuais operações psicológicas sobre a opinião pública no sentido de promover a respectiva mobilização. Além disto, o controle democrático sobre a participação do Brasil em “missões de paz” deve ser objeto de fiscalização parlamentar e social, para se evitar o risco de cooptação das forças armadas por influência de potências estrangeiras. Ou seja, é importante blindar os militares brasileiros da influência por governos estrangeiros. Servidores públicos brasileiros podem ser alvo de operações de influência de governos estrangeiros. Evidentemente que a cooperação militar internacional é saudável, desde que existam limites à cooptação por potência estrangeira.  É inconcebível no século 21 que um Estado que pretenda ser plenamente soberano projete seu poder unicamente para dentro de seu território terrestre. Um Estado forte e soberano depende da projeção de poder aeroespacial e marítimo e, atualmente, poder cibernético. Talvez, a melhor alternativa seja o condicionamento da ampliação de investimentos no setor de defesa, com o compromisso de redução de despesas obrigatórias com o pagamento de pessoal (soldo e pensões). Deste modo, evita-se a influência do corporativismo militar nos destinos a defesa nacional. O corporativismo militar e autoritário não pode dominar o sistema de defesa nacional, muito menos influenciar o sistema político.  

Moral da história entre Estados Unidos e Brasil. Os Estados Unidos projetam seu poder e sua influência sobre o Brasil. Porém, a recíproca não é verdadeira. Um dos alvos da projeção de poder dos Estados Unidos sobre o Brasil é o exército brasileiro. Por isso, aderiram à política de segurança nacional dos Estados Unidos de combate ao narcotráfico. Este tipo de ação é policial e não função das forças armadas. Talvez, seja o caso de se debater a criação de uma polícia costeira, com a missão específica de policiamento do litoral brasileiro e os rios brasileiros, retirando-se esta competência da marinha para possibilitar que ela foque em sua missão institucional de defesa nacional.

Outro grave sintoma desta influência estrangeira, é a adoção de uma política de defesa nacional com projeção de poder somente para dentro, limitada às questões de fronteira, Amazônia, entre outras. Ora, uma nação plena soberana projeta seu poder para fora: no espaço aeroespacial, espaço marítimo e cibernético. Diferentemente, um estado fraco e subdesenvolvido tem como sintoma justamente a maior participação de seu exército na vida política nacional. Estados com maturidade institucional investem em todas as suas forças armadas, inclusive garante o controle civil das forças armadas. Por isso, os Estados Unidos possuem bases navais e aéreas em outros países e o domínio da tecnologia aeroespacial.

Talvez, o Brasil deve começar a pensar na criação em uma quarta força armada, com responsabilidade exclusiva sobre o espaço sideral e cibernético.

Quem sabe este rearranjo de forças possa contribuir ainda mais para o aperfeiçoamento do sistema de defesa nacional, considerando-se que inexiste hierarquia entre exército, aeronáutica e marinha. Porém, compete ao Ministério da Defesa articular o equilíbrio dentro das forças armadas. Pensar de modo contrário, é subverter a ordem constitucional de paridade de armas entre as forças armadas. Entender que o exército tenha influência política e seja maior que a marinha e aeronáutica representa uma patologia no sistema de defesa nacional. A institucionalidade do sistema de defesa nacional demanda o equilíbrio entre as forças armadas, com a vedação à influência política por quaisquer uma das forças. Enfim, entendo necessária a revisão da política de defesa nacional, com maior participação social e cidadão, bem como parlamentar.  Uma nação soberana, tem poder nacional e poder aeroespacial. O Brasil estará indefeso se não contar com uma marinha e aeronáutica com investimentos condignos aos seus desafios de defesa nacional.

Cabe ao Congresso Nacional a responsabilidade quanto à reforma do sistema de defesa nacional, reforçando o compromisso com a democracia brasileiro e a efetivação do princípio do controle civil sobre as forças armadas.  A nação, a Constituição e a democracia agradecem.


[1] Morgenthau, Hans. A política entre as nações. Brasília: Editora UNB, 2003.

[2] Sobre o tema dos militares na política do Brasil, ver: Stepan, Alfred. The military in politics. Changing patterns in Brazil. New Jersey. Princeton University Press, 1974.

[3] Sobre a resistência dos militares à criação do Ministério da Defesa, consultar: Castro, Celso e D’Araújo, Maria Celina. Militares e política na nova república. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2001.

[5] Johnson, Loch K. National Security Intelligence, Cambridge, 2017, p. 18.

[6] Wells, Anthony. Between five eyes. 50 years of intelligence sharing. Oxford, Casemate publishers, 2020.

[7] Stavridis, Admiral James. Sea power. The history and geopolitics of the World’s oceans. Penguin Book, 2018.

[8] Spykman, Nicholas. America’s strategy in word politics. The United States and the balance of power. London and New York: Routledge. Taylor & Francis Group.

[9] Couto e Silva, Golbery. Conjuntura política nacional e geopolítica do Brasil.  Rio de Janeiro. Terceira edição, 1981.