Portal Direito da Comunicação Direito da
Comunicação

Portal Direito da Comunicação

Portal Direito da Comunicação

Artigos

O Brasil, a Constituição, os limites à autoridade da Presidência da República e os riscos de politização das forças armadas

por Ericson Scorsim

maio 25, 2020

Ericson Scorsim. Advogado e Consultor em Direito Público. Doutor em Direito pela USP.

O Brasil atravessa uma de suas piores crises na saúde pública, devido à pandemia do coronavírus. Este deveria ser o foco central do governo nacional, entretanto, não o é, conforme ficou escancarado no vídeo divulgado pela mídia sobre a reunião entre Presidente da República e Ministros. Além disto, há sérias questões de geopolítica e geoeconomia de interesse da nação brasileira, em relação à definição dos interesses estratégicos do Brasil, diante da guerra econômica entre Estados Unidos e China que não estão sendo devidamente considerados pelo atual governo. Existem riscos geopolíticos para o Brasil diante da escalada conflituosa entre Estados Unidos e China. O Brasil deveria buscar outras opções estratégicas em suas relações internacionais, para além duas potências globais.  O foco do presente artigo é a questão dos limites à autoridade do Presidente da República em relação às Forças Armadas, devido aos últimos acontecimentos, graves para a nação. Em países democráticos, um dos pilares de organização do Estado Democrático de Direito é o princípio do controle civil das forças armadas, algo consolidado, no exemplo, nos Estados Unidos.[1] Infelizmente, este princípio ainda não está enraizado em solo nacional.[2] Em momentos de crises e fragilidade da sociedade civil e das instituições republicanas é recorrente a convocação das forças armadas, algo que não é bom para a instituição militar, nem mesmo para o país.[3] O atual governo busca se apoiar politicamente nas forças armadas, algo contrário às melhores práticas democráticas.  A participação eventual de militares no governo pode de certa forma, contribuir para a gestão pública. Porém, quando há um cenário de forte ocupação de militares em governo civil, bem como a instrumentalização política pelo Presidente da República das forças armadas, criam-se riscos de práticas contrárias à Constituição, ainda mais quando o Presidente da República participa de atos contrários à democracia.  Alguns militares dão péssimo exemplo ao apoiar atos antidemocráticos. O Ministério da Defesa não pode encampar a defesa de apenas um dos grupos no poder.  Acredita-se que a maior parte dos agentes militares federais possuam o forte compromisso com a consolidação democrática em nosso País.  Ora, em havendo um governo civil democrático deve imperar o princípio do controle civil das forças armadas.  Neste aspecto, é incompatível com o ambiente democrático a partidarização e/ou politização das forças armadas. Por princípio, as forças armadas têm que ser apolíticas ou manter a neutralidade política e a neutralidade ideológica. O governante que busca se apoiar politicamente na imagem, na reputação e no simbolismo das forças armadas, para atentar contra a Constituição, o princípio da separação e harmonia entre os Poderes da República, incorre em desvio de finalidade e/ou desvio de função ou até pode cometer crimes contra a segurança nacional e crime de responsabilidade. Em recente vídeo de reunião entre o Presidente da República e seus Ministros (o qual mostrou as entranhas do atual governo), o Presidente manifestou seu interesse em armar toda a população brasileira. A questão é grave, qual é o interesse oculto desta declaração presidencial? Ao que parece, seu interesse é criar milícias armadas, à sua disposição política. Na Itália, no século 20, Benito Mussolini, ao inaugurar o fascismo, apoiou-se em veteranos, ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial.[4] Por outro lado, se existe toda uma população armada para quê Exército, para quê a polícia militar e civil? Se o modelo de defesa é civil, o porquê das forças armadas e das políticas militares.  Assim, se prevalecer este modelo, cada cidadão com base em seu direito de defesa, não precisará sequer do Estado. Cada cidadão a manu militari fará valer sua defesa. Em hipóteses limites, viveremos um estado descrito por Hobbes; um estado de violência, anárquico, com cada cidadão (os possuem recursos), armado. Ora, acredito que a função das forças armadas, bem como das polícias militares é realizar (a primeira) a defesa nacional e (a segunda) a segurança pública. Se tivermos forças armadas e polícias militares, valorizadas, com recursos e eficientes porque armar a população? Também, extrai-se da visualização do referido vídeo que o Presidente apresentou críticas aos serviços de inteligência nacionais.[5] Ele destacou a presença, inclusive, de infiltração de agentes no governo brasileiro a serviço do governo da China. Ora, se existe este tipo de infiltração no governo brasileiro quais as medidas que serão adotadas? E será que outros governos estrangeiros também estão espionando o Brasil ou possuem agentes infiltrados?  Em 2013, tornou-se público e notório do episódio de espionagem do Brasil realizado pela National Security Agency, objeto inclusive de uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Por outro lado, curiosamente, o Presidente do Brasil Jair Messias Bolsonaro utiliza repetitivamente como bordão a frase bíblica contida no Evangelho de João “Conhecerei a verdade e a verdade vos libertará”. Por ironia histórica, no salão de entrada da CIA dos Estados Unidos há uma frase bíblica: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.[6]

Ora, se há uma séria acusação contra o Presidente da República de interferência nos serviços da Polícia Federal, para fins pessoais, então, é o momento oportuno para se debater no âmbito do Congresso Nacional a reforma dos sistemas de inteligência nacional, bem como os mecanismos de transparência e controle parlamentar e jurisdicional destas atividades, tema já enfrentado pelo Congresso norte-americano. O Brasil e os brasileiros não podem se tornar alvo dos serviços de inteligência nacional e internacionais, sem que o Congresso Nacional assuma o seu relevante papel de exercer o controle sobre estas atividades em proteção à confidencialidade das comunicações, bem como os direitos fundamentais à privacidade e à proteção de dados. Além disto, um grupo de militares da reserva manifestou-se com críticas ofensivas aos membros do Supremo Tribunal Federal. Além disto, apontaram o risco de guerra civil. Ora, estas espécies de declarações do Presidente, bem como de grupos de apoiadores militares e civis, negatórias da autoridade do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional podem caracterizar crimes de responsabilidade, bem como crimes contrários à segurança nacional. Ademais, estes discursos antidemocráticos são intoleráveis e irresponsáveis. Se os militares da reserva referem-se ao risco de guerra civil há algo realmente estranho acontecendo no País, em desobediência à Constituição. Talvez, também, seja o momento de se debater um o controle democrático da participação de militares da reserva em governos e/ou manifestações contrárias às instituições democráticas. Para, além disto, no atual governo, foi indicado um General brasileiro para integrar o Comando Sul das forças armadas dos Estados Unidos, algo inédito na história republicana brasileira.[7] Será que as forças armadas do Brasil estão agora subordinadas ao Comando Sul dos Estados Unidos? Miami governa o Exército do Brasil?  Também, o governo do Brasil assinou, em 2020, um acordo de cooperação militar com os Estados Unidos. Será que a política externa do atual governo é o de entregar a economia brasileira aos interesses dos Estados Unidos?  Foram considerados os riscos geopolíticos de danos à economia nacional deste acoplamento das economias? Será que o atual governo brasileiro pretende entregar a defesa nacional aos Estados Unidos? Ora, o Brasil não deve se subordinar a ninguém, nem aos Estados Unidos, nem China, nem qualquer outro país.  A propósito, a história revela justamente o cenário de intervenções militares dos Estados Unidos em países latino-americanos, bem como ações encobertas realizadas pela CIA para a mudança de governos.[8] É o que aponta o economista norte-americano Jeffrey D. Sachs, em sua obra a New Foreign Policy. Beyond american exceptionalism.New York: Columbia University Press, p. 25. Ora, o cenário é de tensão causada pela guerra econômica entre Estados Unidos e China que competem pela liderança global. Os Estados Unidos estão em primeiro lugar na competição econômica, tendo ainda os maiores gastos globais com suas forças armadas. A China ocupa o segundo lugar no ranking global, comparando-se seu PIB.  Os dois países estão buscando integrar a sua estratégia civil e militar, buscando a liderança no setor das tecnologias emergentes consideradas como dual-use, isto é, com possibilidade de utilização civil e militar. É o caso da tecnologia de 5G, inteligência artificial, robótica, drones, veículos autônomos, espectro de radiofrequências[9], entre outras.  Pergunta-se diante do contexto histórico atual se é uma decisão sábia e prudente do Brasil realizar um alinhamento automático com os Estados Unidos, sendo que a China é o maior parceiro comercial do Brasil? Por outro lado, desde a Grécia antiga, debate-se a respeito da presença de estrangeiros em comandos militares. É a célebre história de Íon, um estrangeiro em cargo político-militar relevante em Atenas. Na história grega, há as clássicas discussões sobre o papel dos guardiões com a função de proteger as cidades diante de ataques de inimigos.[10] Também, causa estranhamento declarações de agentes militares a respeito de julgamentos no Supremo Tribunal Federal, bem como declarações que configuram verdadeira coação sobre o Supremo Tribunal Federal. As forças armadas são uma instituição do Estado brasileiro; não pertencem a nenhum governo. Logo, as forças armadas não podem ser instrumentalizadas politicamente pelo Presidente da República.  A propósito, a Constituição do Brasil dispõe:

“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de destes, da lei e da ordem”.

Assim, qualquer ação do Presidente da República no sentido de enquadrar as forças armadas como órgão de governo e não como de Estado representa atentado à Constituição. Em razão da caracterização das forças armadas como órgão de Estado e não de governo, é proibido aos agentes militares participarem da vida política/partidária. Agentes militares não podem ser filiados a partidos políticos. A propósito, há projeto de lei sobre a “quarentena eleitoral” de agentes militares em relação às candidaturas dos cargos públicos eletivos. O objetivo do projeto de lei é impedir a utilização de cargos públicos por servidores públicos militares para fins de lançamento de suas plataformas eleitorais.[11] Agentes militares não podem expressar preferências políticas/partidárias, muito menos emitir declarações que representem intimação e/ou coação sobre juízes. Ora, a prioridade das forças armadas, no contexto do Estado Democrático de Direito, é a defesa nacional. Não cabe às forças armadas assumirem a direção da sociedade. Também, o Estado Democrático de Direito é incompatível com o controle militar da sociedade.  Segundo Gilberto Freyre: “A tanto vai sua responsabilidade de direção da defesa nacional. Mas devem saber conter-se para não se tornarem sozinhos a Nação ou a defesa nacional”.[12] O foco das forças armadas  é a atuação contra inimigos externos. No âmbito da vida doméstica nacional, existem restrições à atuação das forças armas com a função policial. Em tempos de guerra, o objetivo, por óbvio é eliminar e/ou neutralizar o inimigo. Há algumas tarefas das forças armadas para atuação interna, em função de polícia. Mas, por exemplo, nos Estados Unidos, há regra a proibição da atuação das forças armadas em intervenções militares em questões domésticas, tema tratado no the Posse Comitatus Act of 1878. Em hipóteses excepcionais, é que as forças armadas podem atuar em questões domésticas.[13] Em tempos de paz, a vocação das Forças Armadas tem sido adaptada para atuação em crises humanitárias, desastres naturais, operações de resgates, entre outras. Portanto, se o Presidente da República passa a incitar a utilização das Forças Armadas contra instituições democráticas (Supremo Tribunal Federal, Congresso Nacional e liberdade de imprensa), então há o abuso de poder presidencial e abuso de poder político, em benefício pessoal político-eleitoral. As forças armadas têm o dever de não seguir ordens ilegais e/ou inconstitucionais do Presidente da República. Elas devem atuar conforme o Direito, vinculadas à Constituição e não aos caprichos pessoais do Presidente da República. Ora, a Lei de Improbidade Administrativa contém uma série de salvaguardas aos princípios constitucionais que regem a Administração Pública: legalidade, moralidade, impessoalidade, etc. Neste aspecto, a instrumentalização de Presidente da República, mediante declarações, atos, condutas (visitas a instalações militares, solenidades, viagens), da imagem, reputação e credibilidade do Exército, tem o condão de quebrar as vigas mestras do sistema democrático que caracterizam as forças armadas como órgão de Estado e não de governo. Portanto, o Presidente da República, ao tratar as forças armadas como órgão de governo e não devidamente com respeito à natureza de órgão de Estado, subverte a ordem constitucional. As forças armadas devem lealdade à Constituição. Além disto, o financiamento das forças armadas depende da tributação. Ora, o povo é quem financia o pagamento dos custos das forças armadas.  Logo, as forças armadas devem prestar contas à soberania popular. Ademais, o Presidente da República venceu as eleições com cerca de 57 milhões de votos.  O candidato derrotado obteve mais de 47 milhões de votos. Ora, o governo deve ser prestado para todos os 200 milhões de brasileiros. Neste sentido, as forças armadas não podem ser direcionadas para apoiar um governo; ou para simplesmente se relacionar com 57 milhões de eleitores. E mais de 140 milhões brasileiros como ficam? Serão excluídos das ações do governo? Enfim, a exploração indevida da simbologia, instalações, pessoal militar pelo Presidente da República pode representar atos de abuso de poder presidencial, bem como atos de improbidade administrativa, a ser apurado pelos órgãos competentes. Se continuar este estado de coisas as forças armadas podem ser contagiadas indevidamente pelo vírus do oportunismo político do governante presidencial de plantão. O que está em jogo é a dignidade e a respeitabilidade das forças armadas, diante de abusos,  o indecoro e  de atos de infâmia praticados pelo Presidente da República. Também, a ascendência indevida do Exército dentro do governo (ainda que seja mediante a ocupação de cargos por generais da reserva) sobre as demais Forças Armadas (como Marinha e Aeronáutica). Se for permitido às forças armadas, ainda que através de militares da reserva, participar do governo civil, por que não seria permitida a participação de civis no Alto Comando das Forças Armadas? Por que não se permitir a participação de civis na gestão de quartéis? Por que não permitir a abertura de hospitais militares para o atendimento à população civil? No jogo institucional entres os três Poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário), as forças armadas devem manter a neutralidade política. Aliás, não vejo, a partir da Constituição de 1988, nenhum papel moderador atribuído pela Constituição às Forças Armadas.  Nos termos constitucionais, a função das forças armadas é a defesa nacional, garantia dos poderes constitucionais e preservação da lei e da ordem. As forças armadas são os guardiões da Constituição, dos três Poderes da República e da lei e da ordem, tendo como alvo principal inimigos externo. As forças armadas não podem ser o braço armado a serviço de um grupo político. Caso contrário, haverá a banalização das forças armadas, ao tomar partido de um dos grupos político-partidários ocupantes do poder.  Interpretando-se adequadamente o texto constitucional, não cabe às forças armadas o papel de tutela do governo, algo contrário à sua finalidade constitucional. Segundo o historiador José Murilo de Carvalho, o art. 142 da Constituição diz que as forças armadas estão subordinadas à autoridade suprema do Presidente da República. Além disto, no mesmo artigo ele diz que as forças armadas se destinam à garantia dos poderes constitucionais. Segundo ele, trata-se de uma aberração jurídica, pois ou as forças armadas se submetem ao presidente ou garantem os poderes constitucionais. Segundo texto expresso do autor: “Em caso de presidente que ameace a independência dos poderes, sem que haja ameaça grave ao país, o que farão as forças armadas? A ideologia da tutela as levará a optar pela segunda parte. Imagino que os militares que embarcaram na canoa furada do governo se veem em um dilema: ou caem fora, ou arrisca fazer as forças armadas pagar o custo dos erros do presidente”. Neste ponto, discordo do raciocínio do autor. Uma interpretação teleológica da Constituição revela que as forças armadas estão subordinadas aos três Poderes da República, sendo obrigadas a respeitar o princípio da separação, harmonia e colaboração entre os poderes constitucionais. O Presidente da República é o Comandante em Chefe das Forças Armadas. Mas, existem limites constitucionais em sua relação às forças armadas. Isto não significa que na hipótese de conflito entre os dois ou os três Poderes da República, as forças armadas possuem autoridade constitucional para tutelar militarmente o governo.  Na interpretação do jurista Ives Gandra Martins em entrevista à TV Uol em maio de 2020, as forças armadas possuem o poder moderador. Mas, na hipótese de o Presidente da República ser parte interessada no conflito com os outros poderes, aí a Constituição proibiria a atuação das Forças Armadas como poder moderador. Esta visão parte do pressuposto do controle social em hipóteses de crise institucional estar nas mãos das Forças Armadas. Acredito que não é a melhor leitura democrática do texto constitucional.

Ademais, o referido jurista sustentou em programa de televisão da CNN, exibido em 25.5.2020, que na hipótese de decisão judicial que ordene a apreensão de celular do Presidente da República, no âmbito de investigação penal, a possibilidade de o Presidente não entregar o celular, e inclusive o respaldo das forças armadas, para impedir o cumprimento da ordem judicial. Diferentemente, outro debatedor, o jurista Torquato Jardim defende o contrário, isto é, o dever do Presidente de cumprir a ordem judicial, vedando-se qualquer possibilidade de interferência militar. Acredito que esta linha de sustentação é a mais adequada à Constituição. Decisão judicial cumpre-se.  A Presidência da República não está acima da Constituição e das leis, nem do Supremo Tribunal Federal. Se houver algum conteúdo relacionado à segurança nacional no aparelho celular, então, será o caso de manter-se o sigilo. Nos conteúdos afetados à investigação em curso em inquérito no Supremo Tribunal Federal devem ser objeto de acesso pelas autoridades responsáveis pelo caso. Além disto, segundo o professor Jorge Zaverucha em seu artigo Forte presença militar no estado reflete a fragilidade da democracia no Brasil: “No fundo, a luta pela manutenção do artigo 142 decorre do fato de que ele define quem estabelece o controle social do país em situação de crise. Um sinal de que nossa elite não possui um ethos democrático. Aposta em um governo democrático eleitoral, não é um regime democrático”.[14] Entendo que um grupo armado não pode se constituir em poder moderador da República. Na hipótese de conflito entre Presidente da República e Congresso Nacional, o poder moderador é do Supremo Tribunal Federal. Por sua vez, na hipótese de conflito entre o Presidente da República e o Supremo Tribunal Federal, o poder moderador é do Congresso Nacional.  Enfim, o poder moderador da República jamais poderá estar nas mãos de um grupo armado. O conflito institucional deve ser resolvido pelo diálogo e não pelas coação das armas.  Além disto, cumpre lembrar que há ainda o Ministério Público Federal, órgão constitucional, que pode contribuir na hipótese de conflito entre os poderes da República. Em hipóteses extremas de ruptura institucional, o risco maior é o surgimento de uma guerra civil entre brasileiros e um cenário de desobediência civil, devido à adoção da táticas de confronto adotados pelo Presidente da República. Sobre este tema da divisão interna de um País causado pelas disputas políticas e a questão fundamental sobre se declarar um guerra ou renunciar à mesma, na Índia, há a obra clássica Bhagavad-Gita mostra o dilema ético de Arjuna: é correto matar em quaisquer circunstâncias? De um lado, Krishna persuade seu discípulo Arjuna a engajar-se na guerra dos Bharatas, mas, por outro lado, ele defende a não violência.  Com efeito, Arjuna e Duryodhan, líderes de suas forças militares perguntaram a Krishna e lhe solicitaram apoio. Krishna prometeu não lutar, mas ofereceu aos dois líderes a opção entre o apoio de seu poderoso exército e seus conselhos pessoais. Duryodhana escolheu as tropas de Krishan, enquanto Arjuna pediu a ajuda pessoal do Deus-homem.[15] Moral da história: um exército armado é uma instituição preparada para a guerra e o emprego da força/violência, porém quando utilizado dentro de um país é capaz de dividir uma nação e inclusive, em casos limites, ser o desencadeador de um cenário de guerra civil. Ora, o  Brasil, na guerra de Canudos, enfrentou este período de guerra civil, aonde Euclides da Cunha (aliás, militar) descreveu a matança cometida por militares e pelos jagunços e o banho de sangue em uma luta fraticida.[16]  Daí porque uma força armada jamais pode ser um poder moderador dentre um país, vez que detém o poder de vida e morte sobre pessoas. Assim, tem o potencial de intimidar/ou coagir a liberdade de consciência dos cidadãos. Um grupo armado com tanques, metralhadoras, granadas, foguetes, fuzis, aviões, jamais pode ser considerado um poder moderador da República. Além disto, se este grupo armado adotar um dos lados; se se aliar apenas a um dos poderes da República, simplesmente há a negação do Estado Democrático de Direito, algo que já aconteceu na história do Brasil, com a simples substituição do Presidente da República por uma junta composta de Generais.[17] A violência jamais justificará a instalação de um regime legítimo de direito. Segundo Walter Benjamim, ao tratar do tema da violência: “Se, de fato, a violência (Gewalt), a violência coroada pelo destino, for a origem do direito, então pode se prontamente supor que no poder (Gewalt) supremo, o poder sobre a vida e a morte, quando este adentra a ordem do direito, as origens dessa ordem se destacam de maneira representativa no existente e nele se manifestam de forma terrível”.[18] Ora, o Estado detém o monopólio da violência. Logo, detém o poder sobre a vida e a morte das pessoas, em hipótese de confronto. A violência pode ser utilizada conforme o direito ou contrariamente o direito.  As forças armadas representam este monopólio da força. Logo, em razão de sua natureza constitucional, não podem jamais participar do jogo político, aliando-se a um dos grupos no poder. Reprise-se que o atual Presidente foi eleito por 57 milhões de brasileiros. Porém, há mais de 47 milhões de votos dados ao candidato adversário.  Ora, o  governo deve governar para os restantes  dos 140 milhões de brasileiros.  É evidente que as forças armadas devem atuar conforme o Direito.  Na literatura clássica, a respeito do espírito belicoso, menciona-se o Deus Ares, a personificação do conflito, da violência e da guerra do espírito do combate.[19] Ares podem ser metaforicamente associados ao Exército. O problema em um Estado Democrático de Direito, em tempos de paz e de pandemia devido ao coronavírus, é que o governo não pode ser inspirado por Ares, mas pela capacidade do diálogo. Em casos limites de ruptura democrática, no período representado pelo fascismo, Benedito Mussolini apregoava a negação da política, a negação dos partidos políticos, a negação do parlamento, a violência, a formação de milícias, a perseguição de opositores, entre outros atos fascistas.[20] Além disto, a título ilustrativo, em casos extremos, em 1918, a revolução alemã derrubou o Império e proclamou a República. O chanceler socialdemocrata Ebert realizou acordo com o alto comando do exército para formar um “governo capaz de restabelecer a ordem”. Como resultado desta aliança, em janeiro de 1919, trabalhadores berlinenses são presos, espancados e, juntamente com os líderes Karl Kiebknecht e Rosa Luxemburg, assassinados pela polícia do socialdemocrata Noske.[21] Walter Benjamin considerando este contexto histórico reflete sobre o papel da polícia. Sobre o tema, o autor esclarece: “A afirmação de que os fins da violência policial seriam sempre idênticos aos do resto do direito, ou pelo menos teriam relação  com eles, é inteiramente falsa. Pelo contrário, o ‘direito’ da polícia assinala o ponto em que o Estado, seja por impotência, seja devido às conexões imanentes a qualquer ordem de direito, não consegue mais garantir, por meio desta ordem, os fins empíricos que ele deseja alcançar a qualquer preço. Por isso, a política intervém por ‘razões de segurança” em um número incontável de casos nos quais não há nenhuma situação de direito clara; para não falar nos casos em que, sem qualquer relação com fins de direito, ela acompanha o cidadão como uma presença que molesta brutalmente ao longo de vida regulamentada por decretos, ou pura e simplesmente o vigia”.[22]  O tema da polícia política é atual.  Este é o ponto da acusação da interferência do Presidente da República na Polícia Federal, alvo de investigações no âmbito do Supremo Tribunal Federal. E, no Brasil, frequentemente, por falhas dos sistemas de segurança pública dos Estados, o Exército tem sido convocado a atuar para assegurar a lei e a ordem em cidades, invertendo-se seu papel prioritário que é o de garantir a defesa nacional. Ao contrário, as Forças Armadas acabam se desvirtuando de seu papel prioritário e transforma-se em forças policiais. O princípio da soberania popular requer as forças armadas atuando para a defesa nacional, mas sem interferir na política doméstica. Em tempos de paz, haverá inversão da ordem se as Forças Armadas estiverem mais ocupadas com a vida política doméstica. Se as linhas de defesa constitucional (áreas proibidas pela Constituição) forem ultrapassadas pelo Presidente da República ao manipular o prestígio das Forças Armadas, então, necessariamente órgãos de controle democrático devem ser acionados.  E sobre os sintomas de fragilidade da sociedade, diante de sua desorganização, descreve Gilberto Freyre: “A verdade, porém, é que o país onde o Exército seja a única, ou quase a única, força organizada necessita de urgente organização ou reorganização  do conjunto de suas atividades sociais e de cultura para ser verdadeiramente nação. Nação desorganizada não é Nação; é apenas paisagem. Paisagem ou cenário de nação, esta nação corre o perigo de transformar-se em simples cenário de paradas ou simples campo de manobras. É uma nação socialmente doente, por mais atlética que pareça”.[23] Ou seja, é fundamental que as elites brasileiras assume o compromisso com o enraizamento da nossa democracia em nosso País, para além do período eleitoral e que também elas atuam para o fortalecimento das sociedade civil, caso contrário será haverá o risco de militarização do País.

E, prossegue o autor: “Uma nação que viva parasitariamente das iniciativas e das realizações de seu exército e dos remédios heroicos que o exército lhe forneça para as suas deficiências de organização civil será antes uma sub-nação dominada por um super-exército que uma nação normal e saudavelmente completada por um exército necessário, essencial, indispensável”.[24] Gilberto Freyre explica:  “Toda nação moderna é que necessita ser: uma organização em que o exército e as demais atividades nacionais se completem. Nada de exército feudal e ‘prussiana mente” senhor de um resto apenas de nação; nem de nação que seja apenas pretexto para a existência de exército ou ‘super-exército”.

Por sua vez, para Alexis de Tocqueville em sua obra A democracia na América (sentimentos e opiniões, livro II), há uma contradição entre Nação Democrática e Exército: “Chegamos assim à singular consequência de que, de todos os exércitos, os que mais ardentemente desejam a guerra são os exércitos democráticos e de que, entre os povos, os que mais amam a paz são os povos democráticos; e o que acaba de tornar a coisa extraordinária é que a igualdade produz ao mesmo tempo esses efeitos contrários”. Conclui Tocqueville: “Essa disposições opostas da nação e do exército fazem as sociedades democráticas se expor a grandes perigos”.[25] Além disto, Tocqueville explica os riscos da ambição militar por cargos em uma nação democrática: “Um remédio parece se oferecer por si mesmo, quando a ambição dos oficiais e dos soldados se torna temível; aumentar o número de postos a prover, aumentando o exército. Isso alivia o mal presente, mas compromete ainda mais o futuro. (…) Mas, num povo democrático, não se ganha nada aumentando o exército, porque o número de ambiciosos aumentarem sempre exatamente na mesma proporção que o próprio exército”.[26] Em síntese, a melhor alternativa para se combate a ambição política dos militares é a instituição de mecanismos de controles democráticos. Como já referido, diante do dilema brasileiro, a vulnerabilidade da sociedade civil, em razão da desorganização, o Exército é frequentemente invocado. Mas, será que este é o melhor caminho diante da Constituição de 1988? É evidente que não é possível uma nação sem forças armadas democratizadas. Mas, também não é admissível uma nação intensivamente militarizada. Dentre os Três Poderes da República, as forças armadas estão a serviço dos três poderes da República. As forças armadas estão a serviço do Estado brasileiro, não podem se limitar a cumprir papéis designados indevidamente pelo Presidente da República. Aliás, é curioso o protagonismo político do Exército no Brasil. O País tem uma vasta extensão de mar, com recursos de valor que demandam proteção militar, como é o caso das áreas do pré-sal. Porém, a Marinha não conta com recursos suficientes para projetar a soberania nacional sobre o território marítimo. Também, o País possuiu um território aéreo, praticamente continental, e a Força Aérea não possui recursos suficientes para enfrentar os desafios da nacional. Então, porque se privilegiar somente o Exército, na alocação de recursos, ao invés de proporcionalmente, se beneficiar a Marinha e a Aeronáutica. Infelizmente, a história dos países latinos americanos, revela a existência de regimes de interferência militar em governos civis (mediante golpes de estado, ditaduras e regimes autoritários). Por outro lado, é importante conhecer a história brasileira para evitar a repetição da barbárie em nosso País, especialmente para lembrar atos terroristas de estados, bem como dos abusos cometidos pelos serviços de inteligência. No livro de Anna Lee e Carlos Heitor Cony com o título Operação Condor há detalhes e documentos históricos sobre a Operação Condor, uma ação articulada de repressão das ditaduras do Cone Sul nos anos 1970 e 1980, a fim de conter o movimento comunista que se espalhava no continente Sul americano, inclusive com  um plano de ação de assassinatos.[27]  A CIA dos Estados Unidos em ação conjunta com os serviços de inteligência e agentes militares do Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil organizou as operações encobertas.  O livro romance-reportagem busca apresentar o contexto histórico aonde misteriosamente morreram Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda. O livro descreve, também, todo o aparado de interceptação das comunicações e rastreamento dos alvos das operações de contraterrorismo.[28] Mas, a bem da história, a operação representou uma ação de terrorismo de Estado para supostamente combater ameaças comunistas. Enfim, o Brasil passou por uma experiência macabra, durante os regimes militares. Este passado ainda é uma assombração. Porém, com a Constituição de 1988, em resposta a este passado sombrio, delimitou claramente os poderes do Presidente da República, diante das Forças Armadas. Daí porque o prestígio das forças armadas não pode ser explorado politicamente pelo Presidente da República, em busca da tentativa de transformar em órgão de governo, uma instituição de Estado.  Neste contexto, para reafirmar o princípio do controle civil das forças armadas, é fundamental o controle parlamentar e jurisdicional sobre os atos abusivos do Presidente da República, valendo-se de seu cargo, para explorar o prestígio das Forças Armadas, em benefício político-eleitoral pessoal. Em síntese, a Constituição define claramente os limites ao papel do Presidente da República, em relação às Forças Armadas. As Forças Armadas são órgão de Estado e não de governo, vinculadas ao regime democrático, de direitos fundamentais e com vocação prioritária de defesa nacional. Neste aspecto, é importante o aperfeiçoamento dos instrumentos de controle parlamentar e jurisdicional das relações entre a Presidência da República e forças armadas.

 

[1] Também, na Europa há o Geneva Centre for Security Sector Governance órgão especializado em questões de democratizacão das forças armadas, a fim de consolidar o controle civil. Sobre o tema, ver: Information exchange on the OSCE code of conduct on politico-military aspects of security: infra-state elements, 2019.

[2] Segundo o professor Jorge Zaverucha: “O controle civil sobre os militares nunca houve, plenamente, desde a redemocratização em 1985. Sempre pairou uma zona cinzenta que poderíamos chamar de hibridismo institucional. Os ritos de uma democracia eleitoral formal convivem com enclaves e prerrogativas militares. Esse pacto informal resulta em um equilíbrio instável, e o grau de acomodação entre civis e militares varia com as circunstâncias políticas. A novidade é que a Presidência passou a ser exercida por um militar eleito pelo voto popular, mas que considera o Exército a ‘âncora de seu governo. A declaração confere muito peso político aos militares. Creio ser algo inédito na história republicana brasileira e, quiçá, mundial”. Ver: Forte presença militar no Estado reflete fragilidade da democracia no Brasil, Folha de São Paulo, 23.5.2020.

[3] No texto do professor Jorge Zaverucha cita-se: “Conforme ressaltou o sociólogo Charles Tilly caso queira julgar se um Estado é democrático ou não, levando em conta uma única característica, um excelente guia é verificar se a polícia se reporta aos militares ou às autoridades civis. As PMs se reportam a amas autoridades”. Segundo ainda o autor: “Em tempos de paz, o Exército é que atua como reserva da polícia, indo a sua ajuda quando esta não consegue debelar sérios distúrbios sociais. As democracias passa uma linha clara separando as funções da polícia das funções das Forças Armadas. Não no Brasil”.

[4] Sobre o tema, ver: Scurati. O filho do século. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019, uma obra romance sobre a figura do ditador Benito Mussolini, baseados em fatos históricos.

[5] Vídeo publicado no site do STF.

[6] Kornbhulh, Peter. Os brasileiros merecem saber a verdade. O autor é historiador e analisa do arquivo de Segurança Nacional em Washington.

[7] “Southern Command wich focuses on the stability of Central and South America, regional strategic partnerships, and the role of outside powers in this region. It provides contingency planning, operations, and security cooperation in its assigned Area of Responsibility which includes Central America, South America, and the Caribbean (except U.S commonwealths, territories, and possessions). It deters agression, defeats threats, rapidly responds to crises, and builds regional capacity, working with our allies, partner nations, and U.S government (USG) team members members to enhance security and defend the U.S homeland and our national interests”.  Cordesman, Antonhy. U.S competition with China and Russia: the crisis-driven need to change U.S strategy, may, 18, 2020, p. 28.

[9] Utilização do espectro de frequências para comunicações civis e comunicações militares.

[10] Lima, Paulo Butti. Arqueologia da política. São Paulo: Perspectiva, 2016.

[11] O projeto de lei alcança, também, ex-juízes e ex-membros do Ministério Público.

[12] Freyre, Gilberto. Nação e Exército. Biblioteca do Exército. Rio de Janeiro, 2019.

[13] Corner, Geoffrey and outros. National Security Law, principles  and policy. Wolters Kluwer, p. 485-486.

[14] Zaverucha, Jorge. Forte presença militar no Estado reflete fragilidade da democracia no Brasil, Folha de São Paulo, 23.05.2020.

[15] Feurstein, Georg com Brenda Feuerstein. O Bhagavad-Gita, uma nova tradução. São Paulo: Editora Pensamento, 2015, p. 14.

[16] Weffort, Francisco C. Formação do pensamento político brasileiro. Ideias e personagens. São Paulo: Ática, 2006, p. 223-248.

[17] Sobre o tema, consultar: Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling: Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 448-453, aonde mostram a transformação de um golpe de estado em governo, durante o período dos regimes militares no Brasil nas décadas de 60 até 80.

[18] Para a crítica da violência, Benjamin, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. Editora 34, São Paulo, 2013, p. 134.

[19] Hinos homéricos, São Paulo: Editora UNESP, 2010, p. 58.

[20] Ver obra o Filho do século.

[21] Ver: Para a crítica da violência, nota de rodapé 59. Escritos sobre mito e linguagem, p. 137.

[22] Obra citada, p. 136.

[23] Obra citada, p. 28.

[24] Obra citada, p. 30.

[25] A democracia na América (sentimentos e opiniões), livro II. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 311.

[26] Obra citada, p. 335.

[27] Lee Anna e Cony, Carlos Heitor. Operação Condor. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.

[28] Se na época os serviços de inteligência/espionagem conseguiam resultados extraordinários com a tecnologia da época, imagine-se a capacidade de vigilância atual de uma agência como a National Security Agency dos Estados Unidos.