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Radiodifusão – Estudo de caso. A questão da concentração da propriedade privada de rádios e televisões comerciais

por Ericson Scorsim

set 20, 2012

Ericson Meister Scorsim

Resumo: O artigo analisa sentença judicial que, em ação civil pública, julgou improcedente pedido do Ministério Público Federal para impedir que o Grupo Rede Brasil Sul de Comunicação – RBS, em Santa Catarina, acumulasse emissoras de televisão por radiodifusão comercial acima do número máximo legal permitido (duas por Estado). Na petição inicial foi requerida a fixação judicial de percentual mínimo de programação local dos serviços de radiodifusão de sons e imagens, para fins de regionalização da produção cultural, artística e jornalística. Discute-se a ilegalidade da aquisição do controle da empresa jornalística “A Notícia”, por uma empresa ligada ao grupo RBS, alegando-se abuso de poder econômico.

Palavras-chave: Radiodifusão – Concessão – Propriedade de emissoras comerciais de televisão por radiodifusão – Grupo de Comunicação RBS – Limites à Propriedade Privada – Art. 12 do Decreto-Lei 236/67 – Aquisição de empresa jornalística – Abuso de poder econômico – Percentual mínimo da programação local de televisão – Art. 221, inc. III, da Constituição – regionalização da produção cultural, artística e jornalística – Falta de lei regulamentadora – Descabimento de criação judicial de obrigações positivas para a programação televisiva – Ação civil pública – Pedidos julgados improcedentes.

 

  1. Apresentação do Caso: as questões relevantes.

O Ministério Público Federal ingressou com ação civil pública contra as emissoras de televisão, de algum modo ligadas ao Grupo RBS – Rede Brasil Sul de Comunicação, situadas em território catarinense, que transmitem o sinal da Rede Globo de Televisão. Figuram também como rés: TV Coligadas de Santa Catarina S/A (RBS TV Blumenau), Televisão Chapecó S/A (RBS TV Chapecó), RBS TV Criciúma Ltda., RBS TV de Florianópolis S/A, Televisão Joaçaba Ltda. e a Cia Catarinense de Rádio e Televisão (RBS TV Joinville).

A ação foi dirigida contra A Notícia S/A Empresa Jornalística, RBS – Zero Hora Editora Jornalística S/A, União e o CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Questionou-se a alienação do controle societário da empresa “A Notícia”, veículo tradicional sediado em Joinville, para RBS Zero Hora Editora Jornalística.

Em síntese, são três as questões principais debatidas na ação judicial:

1.1.        a interpretação da regra sobre os limites da propriedade cruzada dos meios de radiodifusão, contida no caput do art. 12 e respectivos parágrafos do Decreto-Lei 236/67, que modificou dispositivos da Lei 4.117/62, o qual permite a única entidade de radiodifusão de sons e imagens titularizar, no máximo, duas concessões por estado;

1.2.        a aplicação direta do princípio constitucional referente ao percentual de produção e programação local nas emissoras de televisão, estabelecido no art. 221, inc. III, da Constituição, a fim de determinar a modificação do conteúdo da programação televisiva, impondo-se judicialmente um percentual mínimo de programação de âmbito local, para fins de atendimento ao mandamento da regionalização da produção cultural, artística e jornalística;

1.3.        a ilicitude da aquisição da empresa jornalística responsável pelo Jornal “A Notícia” pelo Grupo RBS, eis que configurado o abuso do poder econômico, nos termos da Lei da Concorrência.

A seguir serão detalhadas as questões controvertidas pertinentes ao caso.

 

  1. Tese da ação civil pública

O MPF alega que o Grupo RBS, somando-se os veículos de comunicação em Santa Catarina e Rio Grande do Sul, é integrado por 18 (dezoito) emissoras de televisão aberta, 2 (duas) emissoras locais de televisão, 8 (oito) jornais diários, 26 (vinte e seis) emissoras de rádio e 2 (dois) portais da internet, uma editora e uma gravadora. Segundo consta da petição inicial, este fato é contrário ao disposto no art. 12, inc. II, do Decreto-Lei 236/1967, o qual trata das restrições à concentração da propriedade privada de rádios e televisões comerciais por radiodifusão. Conforme o MPF, a partir da análise da estrutura societária do Grupo RBS, “a utilização de uma série de pessoas jurídicas interpostas, se destina a afastar a aplicação da legislação que trata do controle dos órgãos de telecomunicação (sic)”. Trata-se, segundo o autor da ação, de “ilícita concentração de estações geradoras de televisão pela RBS”. Pede, ao final, a “obrigação de fazer, redução (sic) das emissoras de televisão do Grupo RBS ao máximo permitido, qual seja, duas (Dec.-Lei n. 236/67), transferidas as demais a outros titulares sem vínculo empresarial ou pessoal com a RBS”. Requer, adicionalmente, a obrigação de veiculação de um percentual mínimo de programação com conteúdo local, em percentual a ser fixado judicialmente a partir da razoabilidade, considerando-se o horário e a audiência, aplicando-se o art. 221, III, da Constituição Federal. Uma vez garantida a veiculação dos programas nacionais, pede que 30% da “grade televisiva no âmbito do Estado de SC, desses sendo 10% nas respectivas regiões interioranas aonde sediadas as emissoras regionais”. Alega a ilicitude da compra do Jornal A Notícia pela RBS Zero Hora Editora Jornalística S/A, eis que ocorrente abuso do poder dominante do Grupo RBS, no mercado jornalístico regional. Pede o desfazimento do negócio, com o retorno da propriedade da empresa jornalística aos titulares anteriores ou a sua venda para terceiros, sem qualquer vínculo empresarial ou pessoal com a RBS. Aduz que o oligopólio da mídia é mais lesivo à sociedade do que qualquer outro setor, isto porque tem o potencial de manipular a informação, em detrimento da concorrência no mercado.

 

  1.  As defesas das emissoras de televisão, da União e do CADE        

Em sua defesa, as empresas de radiodifusão afirmaram que não existe uma única pessoa com participação em mais de 2 (duas) emissoras. Há independência societária e administrativa entre as empresas. O Grupo RBS, segundo trecho da decisão judicial: “consubstancia negócios de grupos de acionistas distintos, presentes nos setores de mídia, que atuam por meio de empresas desprovidas de vínculos societários ou administradores comuns, e que por razões históricas e de marketing se valem de bandeira comercial comum”. As restrições constantes do Decreto-Lei 236/67, por imporem limites à liberdade empresarial, devem ser interpretadas de modo restritivo.

A União foi acusada pelo autor de omissão quanto à fiscalização dos limites legais da propriedade das empresas de radiodifusão. Defendeu a legalidade dos negócios relacionados à constituição e ao funcionamento das emissoras. Alega que sua competência constitucional serve para o controle e a distribuição das faixas de frequências do espectro radioelétrico. Sustentou que o fato dos acionistas das concessionárias pertencerem a uma mesma família não caracterizada a violação da regra que restringe a apenas 2 (duas) as estações de radiodifusão por entidade em cada estado. Disse que as empresas integrantes do Grupo RBS “não tem o controle sobre a oferta dos serviços de radiodifusão de sons e imagens em Santa Catarina ou no Rio Grande do Sul, necessários à caracterização do oligopólio apontado pelo órgão ministerial”, conforme destaca a decisão judicial. Não há, conforme a legislação federal, possibilidade jurídica de outorga de concessão para determinada família.

O CADE alegou que a operação de aquisição do capital social da A Notícia Empresa Jornalística pelo Zero Hora Editora Jornalística S/A foi devidamente aprovada mediante análise do ato de concentração, eis que não verificada nenhuma irregularidade no negócio entre as partes.

 

  1. Sentença de improcedência dos pedidos

A decisão entendeu que não “restou cabalmente demonstrado nos autos” a violação do art. 12 do Decreto-Lei 236/67, especificamente a regra que proíbe a concessão de mais de duas emissoras de radiodifusão à mesma empresa. Segundo a sentença (valendo-se do argumento da União): “não houve a concessão de serviços de radiodifusão à ‘família Sirotsky’, e sim a pessoas jurídicas distintas, com quadro societário diverso, o que se comprova mediante o exame dos respectivos estatutos sociais juntados aos autos”.

Da leitura da r. decisão conclui-se que as provas dos autos judiciais não foram suficientes para demonstrar à infração ao referido dispositivo normativo, conforme alegado pelo autor da ação. Consta, ainda, da sentença que as emissoras de televisão, ora qualificadas como rés, não dominam o mercado publicitário catarinense. É fato público e notório que atuam outras empresas que disputam receitas de publicidade, filiadas às redes nacionais, Sistema Brasileiro de Televisão – SBT, Rede Bandeirantes de Televisão e Rede Record de Televisão. Há, portanto, plena competição no mercado, razão pela qual é improcedente a alegação de formação de oligopólio da mídia. Ao tratar dos princípios referentes à produção e programação das emissoras comerciais dispostos no art. 221 da CF, o eminente juiz entendeu que se trata de dispositivo não auto-aplicável que demanda regulamentação pelo legislador. Estes princípios, de acordo com a sentença, não são capazes de criar obrigações para as emissoras no que tange à programação televisiva. Ao Judiciário é vedado, ainda baseado em princípio constitucional, “estabelecer percentuais de programação televisiva sem base legal”. Quanto à operação de aquisição do controle acionário da empresa jornalística A Notícia, entendeu pela inexistência de infração à ordem econômica.

 

  1. Reflexões sobre o caso dentro do contexto normativo 

 5.1. Discussão dos limites estatais da propriedade cruzada das emissoras comerciais de televisão por radiodifusão: a inadequação do critério legal

 Como já referido, o Decreto-lei nº 236/67, ao tratar dos limites da propriedade privada cruzada das emissoras de televisão, estabeleceu como critério o número de estações radiodifusoras no âmbito nacional (máximo, dez) e regional (duas por estado), de propriedade de uma mesma “entidade”. A r. sentença acolheu a interpretação do dispositivo mencionado invocada na defesa do poder concedente. Tradicionalmente, o Poder Executivo classifica como entidade tanto a pessoa física quanto a jurídica. Esta interpretação não considera as relações de parentesco porventura existentes entre os integrantes das empresas radiodifusoras. Verificou-se apenas formalmente quais são as pessoas jurídicas proprietárias das estações de radiodifusão que possuem o direito à prestação dos serviços de televisão por radiodifusão e seus respectivos sócios. A r. sentença não acolheu a proposta interpretativa ampla do autor da ação. O MP requeria a consideração da atuação empresarial unitária e conjunta de todas as emissoras de televisão geradoras de uma mesma programação televisiva no âmbito de Santa Catarina.

É relevante apresentar algumas considerações a respeito do contexto em que está inserido o art. 12 do Decreto-Lei nº 236/67, o qual restringe a acumulação de concessões de estações de radiodifusão a, no máximo, duas por estado. Primeiro, trata-se de dispositivo imposto no regime militar. Não é, portanto, uma Lei debatida e votada no Congresso Nacional. Diferentemente da Lei 4.117/62, que ainda disciplina os serviços de radiodifusão, que foi discutida exaustivamente no parlamento, com inúmeros artigos vetados pelo Presidente João Goulart e que foram, posteriormente, derrubados pelo parlamento. Segundo, o critério do número de emissoras de radiodifusão, no território nacional ou estadual, é arbitrário e artificial. Trata-se de uma regra de controle prévio das estruturas de comunicação social. A arbitrariedade decorre de sua irrazoável e desproporcional proibição quantitativa quanto ao número de emissoras comerciais. Este limite fere a liberdade de iniciativa no mercado da radiodifusão. Por que, nos estados mais ricos e populosos da federação, um único grupo de comunicação não pode ser proprietário de mais de duas emissoras de televisão? A medida questionada cria barreiras artificiais à entrada de competidores. O número de emissoras não é o parâmetro adequado para avaliar a concentração no setor. Mais importante é saber se, no âmbito geográfico estadual, existem outras emissoras ou grupos concorrentes capazes de disputar a audiência e a atenção dos consumidores. A concentração econômica é um mecanismo de autodefesa empresarial, utilizado para a sobrevivência no mercado. É, também, a estratégia utilizada para expansão e universalização dos serviços de radiodifusão. Talvez, se, desde suas origens, fosse aplicada uma “interpretação estritamente literal” do art. 12 do Decreto-Lei nº 236/67 não teriam surgido as redes nacionais de televisão. Ou, quem sabe, sequer os serviços de radiodifusão teriam sido universalizados. A regra, ora analisada, é incongruente e insuficiente em termos de política pública regulatória. Isto porque ela é incompatível com a evolução do mercado brasileiro e suas respectivas conexões com a economia internacional. Modernamente, as empresas atuam sob titularidades e nomes diferentes. Porém, normalmente a gestão é feita, de modo articulado, sob um centro de direção que desempenha o controle de fato. Esta realidade implica na necessidade de revisão dos conceitos do direito administrativo, quanto ao aspecto do controle da propriedade das concessões de radiodifusão, para incorporar as noções de poder de controle do direito societário e do direito econômico. Daí a necessidade de revisão da lei da radiodifusão para ser adaptada a novos conceitos. As noções atuais mais atualizadas de limites ao poder da mídia, para fins de garantia da concorrência e pluralismo, não se restringem ao controle da propriedade privada direta. Ao contrário, consideram o potencial de influência de um agente econômico sobre outro, verificando-se os acordos, contratos e alianças estratégicas, firmados na produção, financiamento, transmissão e distribuição de programas televisivos. Dentro de um novo cenário de convergência de mídias, como assegurar a competição leal e a igualdade de condições entre os meios de radiodifusão, os serviços de comunicação audiovisual de acesso condicionado e aqueles de distribuição de conteúdo audiovisual que se utilizam da internet?  O critério em análise não é compatível com a eficiência do mercado na alocação de recursos escassos, na hipótese de utilização das freqüências do espectro eletromagnético. Ora é imprescindível a atualização da lei da radiodifusão de modo a possibilitar a redução dos custos de transação. O parâmetro normativo é contrário ao princípio da livre competição, pois reduz o potencial competitivo das empresas de radiodifusão e a liberdade de iniciativa em diversas localidades. Quanto maior for o número de estações geradoras de radiodifusão que uma empresa ou grupo empresarial possuir, maior será, a princípio, o potencial de geração de conteúdo local. Caso contrário, haverá apenas a multiplicação de estações repetidoras e retransmissoras, vez que inalcançadas pela limitação do texto legal. Além disso, o núcleo-chave para a compreensão do problema das restrições à propriedade privada no setor de radiodifusão passa pela interpretação do art. 220, §5º, da Constituição. Esta regra dispõe que os meios de comunicação social não podem ser direta ou indiretamente objeto de monopólio ou oligopólio. Trata-se da garantia do pluralismo na mídia: diversidade e pluralidade de meios e de conteúdos. O STF, na ADPF nº 130/DF, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, em decisão proferida no contexto do julgamento que concluiu pela não recepção da Lei de Imprensa, a qual havia sido adotada no regime militar (1967), ao abordar o art. 220, §5º, afirmou que se trata de “norma constitucional de concretização de um pluralismo finalmente compreendido como fundamento das sociedades autenticamente democráticas; isto é, o pluralismo como a virtude democrática da respeitosa convivência dos contrários”. Na mesma decisão afirmou-se: “A proibição do monopólio e oligopólio como novo e autônomo fator de contenção de abusos do chamado ´poder social da imprensa´”. E, ainda, garantiu-se a ampla e irrestrita proteção à liberdade de imprensa quanto à produção e difusão de conteúdos, salvo as restrições constitucionais que protegem outros bens. Na ocasião, reconheceu-se a diferenciação do tratamento normativo entre a mídia impressa, a radiodifusora e a televisiva. Ainda no contexto da ADPF nº 130, o STF reiterou o seu entendimento dos serviços de radiodifusão como uma espécie de serviço público próprio da União. Porém prestados pela iniciativa privada mediante contratos de concessão, ou permissão ou autorização. Em outro momento, ao julgar a ADI 3.944/DF, a Corte confirmou este entendimento. No julgamento da constitucionalidade do Decreto 5.820/206, que trata do Sistema Brasileiro de TV Digital, analisou-se a transição do padrão de transmissão da radiodifusão analógica para a digital. Afirmou-se que as emissoras de televisão comercial, por serem concessionárias do serviço público de radiodifusão, têm que aceitar a obrigação administrativa, ainda que seja criada por regulamento de maneira a impor novos encargos ao contrato de concessão, representada pela mudança do padrão de televisão. O Ministro Relator Carlos Ayres Britto consignou: “não considero a televisão digital um novo serviço ante a TV analógica. Trata-se ainda de transmissão de sons e imagens por meio de ondas radioelétricas (radiodifusão). Transmissão, é verdade, que passa ser digitalizada e a comportar avanços tecnológicos, mas sem perda de identidade jurídica”. Decidiu-se, ainda que o decreto, ao consignar canais adicionais de freqüências para as emissoras comerciais, não ofenderia o art. 220, §5º, da Constituição. Cumpre destacar que esta visão tradicionalíssima do STF considera todas as espécies de rádio e televisão como serviço público. Por outro lado, com o devido respeito, esta interpretação clássica desconsidera as características essenciais de cada conceito tipológico ligados aos serviços de radiodifusão. E, ainda, não atende ao imperativo da máxima efetividade do art. 223, da CF, que consagrou o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão estatal, público e privado, questão esta mais à frente analisada.  Por outro lado, alerte-se para o fato do art. 220, §5º, não ter sido ainda regulamentado pelo legislador. Isto ensejou o ajuizamento de uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão – ADO nº 09, ora pendente de julgamento no STF. Enfim, a questão mais relevante a ser discutida gira em torno dos limites das restrições estatais ao direito à propriedade privada. Sabe-se que a propriedade não é um direito absoluto, mas também não são absolutas as competências estatais. Deste modo, as freqüências são classificadas como uma espécie de bem público. Todavia, o direito de uso não pode ser reservado exclusivamente à União, sob pena de grave inconstitucionalidade. O direito à criação de estações de radiodifusão está diretamente ligado à regulação do acesso e do uso das freqüências. Paradoxalmente, malgrado a robustez das mudanças do modelo regulatório da radiodifusão causadas pelo texto constitucional, o debate em torno de sua regulação precisa ser redefinido. A Constituição, ao promulgar o Estado Democrático de Direito, rejeita a concepção do controle dos meios de comunicação social. Este enfoque do controle contém um viés autoritário e perigoso à liberdade de comunicação. Sem dúvida alguma, a Constituição admite e exige a regulação dos serviços de radiodifusão em suas diferentes modalidades. A contemporânea concepção regulatória, que se liberta do Estado controlador e advoga um Estado Regulador, por sua própria natureza, demanda o equilíbrio na consideração equitativa de todos os interesses em conflito. Neste contexto admite-se a edição de uma lei específica para o setor de radiodifusão, desde que veicule parâmetros mínimos. Atualmente, em razão das garantias da Constituição à liberdade de imprensa, reconhecida em jurisprudência do STF (evidentemente aplicável à liberdade de radiodifusão com as adaptações necessárias tendo em vista o acesso e a utilização das freqüências), é inconstitucional a edição de lei com a finalidade de maximizar o controle sobre a liberdade dos meios de comunicação. Entende-se que o centro da discussão deve partir da própria visão crítica à concessão de serviço público. As televisões e rádios comerciais não devem ser mais qualificadas como uma “concessão” da União. As emissoras comerciais devem ser reconhecidas como representantes de uma atividade econômica como qualquer outra. Devem ser submetidas ao regime privado e não mais ao regime de concessão de serviço público. Há aqui uma questão de princípio: não existe liberdade concedida. A concessão da liberdade é algo típico dos regimes autoritários. Em um Estado Democrático de Direito, a liberdade de comunicação social é de titularidade das empresas de comunicação, sejam brasileiras ou estrangeiras. A restrição estatal abusiva à propriedade privada no setor da comunicação pode representar um sacrifício maior: um atentado às liberdades democráticas, especialmente à livre produção e difusão de conteúdos. O dirigismo estatal na produção e na difusão de conteúdo audiovisual é mais perigoso aos bens democráticos do que o livre exercício da propriedade privada dos meios de comunicação. Em uma moderna concepção regulatória da comunicação social, não há como ignorar que as mentes que recebem as informações são livres; elas detêm o controle quanto à recepção das mensagens. Algumas, certamente são influenciáveis, outras não. O controle do imaginário popular e da opinião pública é historicamente disputado pelo poder político. Agora, uma democracia madura depende do reconhecimento e do respeito à autonomia dos cidadãos e a liberdade dos consumidores. No campo midiático, as medidas regulatórias de caráter paternalista não são saudáveis para o amadurecimento da cidadania brasileira. A hipótese de maior restrição estatal à liberdade de radiodifusão é no domínio das emissoras de televisão e de rádio estatais e públicas. Estas modalidades são serviços públicos em seu sentido clássico. Diferentemente, as emissoras comerciais estão submetidas dentro de um regime de autonomia privada muito maior, se comparadas com as estatais e as públicas não-estatais. Há um núcleo essencial da autonomia das emissoras comerciais que não pode ser restringido por lei, muito menos pelo Poder Executivo. Esta diferenciação de tratamento normativo entre os diversos meios de radiodifusão não pode ser desconsiderada. É inegável a necessidade de regras de limitação à propriedade para a convivência e a harmonização entre os diferentes setores. É fundamental garantir condições mínimas para a competição equilibrada. Por exemplo, a recente Lei nº 12.485/2011, que trata dos Serviços de Comunicação Audiovisual de Acesso Condicionado, aprovou limite para o controle ou titularidade da participação do capital total e votante das empresas prestadoras de serviços de telecomunicações por concessionárias ou permissionárias de radiodifusão. Também, impôs o limite de 30% (trinta por cento) do controle ou participação do capital total e votante das rádios e televisões por radiodifusão, de produtoras e programadoras com sede no Brasil, por empresas prestadoras de serviços de telecomunicações de interesse coletivo. Estipulou, ainda, restrições às empresas de telecomunicações quanto à aquisição ou financiamento da compra de direitos de exploração de imagens de eventos de interesse nacional e a contratação de talentos artísticos nacionais, inclusive direitos sobre as obras de autores nacionais.

A seguir será analisada a autonomia privada das emissoras de televisão quanto à organização de sua grade de programação, sendo a lei a única fonte de obrigações para eventuais restrições impostas em nome da regionalização da produção cultural, artística e jornalística.

 

5.2. Restrições à liberdade de programação televisiva, baseadas no art. 221, inc. III, da Constituição, somente podem ser impostas mediante lei prévia e compatível com os outros dispositivos constitucionais: a primazia da autonomia privada diante da omissão legislativa  

A aplicação direta dos princípios catalogados no art. 221, inc. III, da Constituição, sem a intermediação detalhada de lei federal, cria modificações profundas no modelo de negócios, na produção e programação das emissoras. Afirmou a r. sentença que o princípio constitucional, dotado de vagueza e intensa carga de abstração, não é suficiente para justificar a criação de obrigações positivas na produção e programação das tevês, independentemente de lei. A liberdade de comunicação das concessionárias não pode ser restringida, sem a prévia existência de lei que detalhe suas obrigações. A imposição de limites quer pelo Poder Executivo, quer pelo Poder Judiciário, à autonomia privada das empresas de comunicação social, sem o respaldo de lei, é ofensiva ao princípio da reserva legal. É inegável o surgimento de expectativas quanto à realização da regionalização da produção e programação televisiva. Acontece que, se prevalecente a tese do autor, seria criado um cenário de incerteza e insegurança regulatórias para o modelo da radiodifusão, o que comprometeria suas funções. Afinal, o preenchimento da grade de programação das emissoras depende de prévio planejamento do conteúdo audiovisual a ser veiculado. Para tanto, são celebrados inúmeros contratos ligados aos investimentos, à produção, à exibição e distribuição de programas televisivos. Existe um modelo de negócios, estabelecido há décadas, baseado na interpretação da legislação em vigor e da própria Constituição que não pode ser radicalmente afetado de um momento para outro, sob pena de grave ofensa à segurança jurídica e à legalidade.

 

  1. Conclusões

Em síntese, o estudo do caso judicial fundamentou-se dentro do contexto da evolução do tratamento jurídico conferido aos serviços de televisão e rádio por radiodifusão. A história brasileira apresenta dois momentos significativos de afirmação da liberdade de radiodifusão: a Lei 4.117/62 e a Constituição de 1988, ambas surgidas em regimes democráticos. Entretanto, no intervalo entre estes dois períodos, o regime militar causou grave retrocesso ao País. Dentro de um contexto autoritário é que aparece o Decreto-Lei nº 236/67 que modificou dispositivos da Lei 4.117/62. Ora, com a Constituição de 1988 e suas respectivas emendas, adotou-se uma nova proposta para a organização do Estado e do mercado, o que inclui a comunicação social. Em um novo ambiente de livre competição, não devem ser mais admitidas barreiras estatais artificiais à entrada no mercado de radiodifusão. As restrições descabidas e abusivas ao direito de acesso e de uso das freqüências do espectro, tão necessárias aos serviços de radiodifusão, devem ser eliminadas. Em síntese, a sentença judicial, ora examinada, julgou duas questões relevantes para o direito da comunicação: a propriedade cruzada das televisões comerciais por radiodifusão e a regionalização da produção artística, jornalística e cultural. O cenário normativo e teórico subjacente ao caso é muito maior, inclusive demanda a atualização da legislação. Entre outras, por duas razões básicas: a inadequação do critério legal que disciplina a propriedade cruzada e a omissão legislativa quanto à regulamentação dos artigos constitucionais acima mencionados.

Revista de Direito das Comunicações, v.4, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais – RDCom, pág. 293-315, jul-dez,  2011.