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Abuso Militar

Resiliência civil e democrática ao abuso de poder militar: a necessidade de contenção da influência militar na política doméstica. A demanda por amadurecimento institucional das forças armadas.

por Ericson Scorsim

ago 10, 2021

O Brasil não tem amadurecimento institucional na questão militar, isto é, no controle civil sobre as forças armadas.  Em países de democracia avançada há o enraizamento do princípio do controle civil sobre as forças armadas. Por aqui, há, infelizmente, a influência por alguns militares, com liderança tóxica, no âmbito da política.

Vamos imaginar a seguinte hipótese. Em um país fictício, pode ser das Américas, da África, Europa ou Ásia, um determinado candidato à Presidência da República, ex-militar, receba apoio de potência estrangeira, mediante serviços de inteligência e financiamento em sua campanha eleitoral. Vamos imaginar que um grupo de militares de alta patente como generais apoiem a candidatura deste candidato presidencial. E que este grupo de militares organize ações simbólicas para excluir a candidatura do adversário político. Vamos imaginar que neste país fictício uma vez eleito o candidato ex-militar forme um governo com a participação maciça de militares. Em contrapartida ao apoio eleitoral o então Presidente recompensa com a nomeação em cargos do governo em larga escala de outros militares. Ou seja, o apoio militar à candidatura e à sustentação do governo teve como moeda de troca a nomeação em cargos do governo civil, bem como a ampliação do repasse de recursos para as forças armadas. Como enquadrar este tipo de situação da participação de militares no jogo político-eleitoral? É legítimo que um grupo militar participe do jogo político-eleitoral? Não, não é legítima.

 É legítima a influência militar na política doméstica em um Estado Democrático de Direito?  Evidentemente que não. É ética este tipo de exercício de poder militar para influenciar o poder político? Obviamente que não.  O jogo de “vale tudo” é compatível com as regras do jogo democrático? A resposta é negativa. Os militares são jogadores no jogo político-eleitoral? Por óbvio que não. O poder militar está acima do Estado Democrático de Direito, da Constituição, da lei e da ética militar?  Não, não está.

Acredito que há a subversão da ordem democrática, com este tipo de participação militar na vida política nacional, um governo civil imensamente ocupado por militares.  Há uma ofensa direta ao sagrado princípio do controle civil das forças armadas. Um militar é um servidor público, integrante de carreira de estado, subordinado aos comandos constitucionais e legais. Por isso, não pode se servir do cargo militar em apoio a determinado candidato e/ou governante. Esta participação de militares como jogadores (e jogadores literalmente com poder de jogo) no jogo político-eleitoral é uma aberração institucional e deve ser contida pela sociedade civil-organizada e pelas instituições democráticas. Tolerar o arbítrio do abuso do poder militar é preparar a cova da democracia. A última moda é militares comentando sobre o voto impresso, desde militares da ativa e da reserva. Neste último caso, ver nota dos Clubes Militares sobre voto impresso.  O bom militar é o militar mudo, o grand muet, como diria a república francesa.   

A história brasileira, desde a promulgação da República, governos de Getúlio Vargas e regime de ditadura militar (1964-1985) é recheada de péssimos exemplos de golpes militares, causados pelo abuso do poder militar, em conluio com civis. Por isso, precisamos olhar para o retrovisor histórico do Brasil, apenas vermos os riscos à democracia brasileira e às instituições, derivados da participação de militares no jogo político-eleitoral e no apoio a governantes.  Há sempre riscos de golpes de Estados, conspirações, conluios.

No Brasil, há a Constituição, a lei de abuso de autoridade, lei de ilegibilidade, lei de improbidade administrativa, entre outras. Mas, entendo que é necessária uma emenda constitucional para impor maior sobre o abuso de poder político e do poder militar. Na história brasileira, já outrora, Rui Barbosa em sua obra Contra o Militarismo[1] já advertia sobre os riscos do envolvimento militar na política doméstica, com destaque à sua crítica em relação à candidatura militar do Marechal Hermes da Fonseca. Segundo ele: “a candidatura militar, desastradamente armada para salvar as posições de alguns chefes políticos, encerra em si a desgraça irremediável do Brasil”.  Já apregoava a incompatibilidade entre uma candidatura militar e a república. E, ainda, nas palavras de Rui Barbosa: “Eis aí, senhores, em condições de relação direta com o candidato militar, indício veemente de que o demônio do militarismo, a obsessão da política servida pela força armada, invadira a administração da Guerra, e se apoderara de seu Ministro”.  E, ainda, Rui Barbosa para o risco fatal: “Nunca se viu melhor, senhores, que a política no Exército é a sua dissolução. A título de reorganização das nossas forças de terra, agravou-lhes a desorganização, já pavorosamente adiantada”.

Outro autor Olavo Bilac, também no século 20, já apontava sua discordância do militarismo, embora fosse favorável ao engajamento da sociedade civil na defesa nacional.  Vejo a radical incompatibilidade entre a participação de militares na política doméstica, seja por influência direta e/ou indireta, algo nefasto ao Estado Democrático de Direito e à Constituição. Percebo que se trata uma patologia de alguns líderes militares tóxicos, baseando-se em sua ambição de poder, mas que praticam atos anti-democráticos. O romance dos três reinos de Luo Guanzhong narra o conflito fatal de uma guerra civil. A história mostra a aliança de generais que provocam a traição de seu reino ao se aliar com o inimigo. Mas, o pior que tudo é a manipulação de militares para buscar “inimigos dentro do Brasil”, o que evidentemente causa uma fratura e trauma institucional. A lógica militar é simples; treinamento para matar e/ou morrer. Serviço de inteligência militar é para espionar inimigo.

Não é compatível com o Estado Democrático de Direito a mistura entre a dimensão civil e a militar. O que é jamais admissível é a subordinação do civil ao militar. Também, é deprimente ver a vassalagem de determinados líderes políticos à classe militar. Resumindo-se precisamos de uma reforma constitucional para conter os eventuais abusos de poder militar contra a democracia. Um país com maturidade institucional tem regras claras, precisas e aplicadas, quando necessário, quando houver desvio de finalidade por certos agentes militares que desonram o código de ética militar. A história da arrogância ou como diriam os gregos a hybris é uma patologia.  O pêndulo do jogo democrático depende do equilíbrio de força civil e a militar. A nemesis é justamente a noção de equilíbrio e de moderação, vital para garantir os interesses de todos. O crescimento ilimitado do poder militar é uma patologia institucional a ser corrigida pelos mecanismos democráticos e pelas instituições da república. Resumindo-se o Estado Democrático demanda a resiliência civil aos abusos de influência militar e do poder militar sobre a política doméstica. O Brasil crescerá institucionalmente se houver esta resiliência civil diante da perversão influência miliar nos destinos do País.

Por isso, mudanças institucionais são fundamentais para se reformar as forças armadas, para a proteção de sua institucionalização democrática. Nenhum militar pode se utilizar de seu cargo para fins político-eleitorais em apoio a candidatos e/ou governos.

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Ericson Scorsim. Advogado e Consultor em Direito do Estado. Doutro em Direito pela USP.


[1] Contra o militarismo. Discursos. Político e sobre comércio e navegação. Campanha eleitoral de 1909 a 190. J. Riberio dos Santos (editor). Rio de Janeiro.