Portal Direito da Comunicação Direito da
Comunicação

Portal Direito da Comunicação

Portal Direito da Comunicação

Artigos

Desmilitarização do Gabinete da Segurança Institucional da Presidência da República: a necessária reforma institucional

por Ericson Scorsim

dez 18, 2020

Ericson Scorsim. Advogado e Consultor em Direito do Estado. Doutor em Direito pela USP.

O foco do presente artigo é a análise da natureza do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, à luz do princípio do controle civil das forças armadas.[1]

Este órgão está vinculado à Presidência da República. A nomeação para o cargo é efetuada pelo Presidente da República. Ora, a Presidência da República representa a Chefia do Poder Executivo, um poder civil. O governo dever ser civil, por determinação da Constituição da República.

Dentre as atribuições institucionais do Gabinete de Segurança Institucional, nos termos Lei n. 13.844, de 18 de junho de 2019, estão: assuntos militares de segurança, análise de riscos, prevenção de crises e articulação de gerenciamento de crises com ameaça à estabilidade institucional, coordenação das atividades de inteligência federal, coordenação das atividades de segurança da informação e das comunicações na administração pública federal, planejamento, coordenação e supervisão da atividade de segurança da informação na administração pública federal, incluídos a segurança cibernética, gestão de incidentes computacionais, a proteção de dados, o credenciamento de segurança e o tratamento de informações sigilosas, a segurança pessoal do Presidente e Vice-Presidente, familiares do Presidente e Vice-Presidente, segurança das residências do Presidente e Vice-Presidente, planejamento e coordenação de eventos com a presença do Presidente da República.

Além disto, o Decreto n. 10.656, de 9 de dezembro de 2020, ao aprovar a estratégia nacional de segurança das infraestruturas críticas, reforça o papel do Gabinete da Segurança Institucional  em atividades de coordenação de segurança das infraestruturas críticas, inclusive mediante operações de inteligência.  Mas, na prática, este novo Decreto permite o controle militar sobre as infraestruturas críticas. Este um ponto de reflexão para os agentes econômicos. Afinal, é um Gabinete de Segurança Institucional ou Insegurança Institucional? Empresas privadas aceitarão o controle militar sobre as infraestruturas críticas? O correto é a atribuição desta função a um órgão civil e técnico especializado no tema da segurança das redes.  Esta atribuição militar produz riscos de interferência estatal indevida nos mercados.  A título ilustrativo, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados foram indicados militares para ocuparem cargos. Além disto, como agência subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional: a Agência Brasileira de Inteligência.

A Anatel foi incluída pela Abin, no sistema brasileira de inteligência, o denominado SISBIN. Deste modo, a Anatel participará do sistema de coleta de sinais de inteligência. Há de ser visto isto com extrema cautela, diante de eventuais ameaças ao regime de direitos e garantias fundamentais. Como se percebe, há o agigantamento de atribuições ao Gabinete de Segurança Institucional, algo que representa um risco à democracia. O envolvimento das forças armadas no governo representa uma perversão sistêmica do sistema democrático. Forças armadas devem servir à soberania popular, sendo um órgão de Estado e não de governo. Por isso, as forças armadas e os militares (da ativa e/ou reserva) não podem servir a determinada facção política.  

O Gabinete de Segurança Institucional não pode servir à proteção dos interesses familiares do Presidente da República. Afinal, o governo deve ser civil e não militar. E mais, o Presidente da República obteve maioria de votos, porém milhões de brasileiros não votaram no candidato a presidente ora eleito. Portanto, o Exército (e/ou forçar armadas), ao se envolver com determinada facção política corre o risco de assumirem responsabilidades políticas em seu colo, inclusive serem contaminadas toxicamente pelos atos do Presidente da República.  Além disto, esta militarização do governo causa graves danos à economia nacional, bem como causa danos ao povo brasileiro, à medida que ao invés de incentivar o pacifismo institucional, incentiva-se o regime de exacerbação das paixões políticas.

Percebo grave problema para com a nomeação de militar, ainda que seja da reserva,  para o cargo do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. A utilização de terno e gravata não apaga a farda da alma do militar. Todas as atribuições designadas para o Gabinete de Segurança Institucional podem e dever exercidas por civil. Por isso defendo a desmilitarização neste cargo, por força do princípio do controle civil das forças armadas. O cargo deve ser ocupado por um líder civil e não militar, justamente para evitar o risco de cooptação de membros das forças armadas em cargos de natureza civil. Não há, nenhuma, razão de ordem objetiva para a nomeação de militar para este cargo. A segurança institucional da Presidência da República pode e deve ser conduzida por civis. Justamente, para evitar os riscos de abusos, tanto da parte do Presidente da República, quanto de abuso de influência política por parte do exército.

O atual governo do Brasil é um dos mais militarizados do mundo. O nível de ocupação de cargos públicos estratégicos por militares em postos-chave da administração pública é uma barbaridade.  Se fosse feita uma fotografia com os agentes do governo utilizando fardas e coturno ver-se-ia a big Picture real. Ocorre que esta prática de nomeação de militar é uma deturpação do governo civil representativo. O militar ainda que seja da reserva tem influência sobre as corporações militares. Há um peso simbólico com sua nomeação para um alto cargo da administração pública.  Ao que parece, a nomeação de militar para o Gabinete de Segurança Institucional é uma medida para cooptar os militares do exército em apoio ao governo. Aparentemente, a indicação de militar para o Gabinete de Segurança  Institucional pode ser uma coisa boa. Seu prestígio, sua influência e sua expertise podem ser trunfos políticos. Porém, a visão militar adota estratégias e táticas, bem demarcadas.

A visão do “inimigo” dentro do território nacional. Por isso, adversários políticos são tratados como inimigos. O militar é treinado para cenários de guerra. O militar é treinado para matar e/ou vencer os inimigos. A letalidade e armamento são mecanismos inerentes à natureza militar.  Há táticas de operações de influência da opinião pública, operações cibernéticas, operações psicológicas. Coincidentemente, o “gabinete do ódio” surgiu dentro do palácio do planalto próximo ao Gabinete de Segurança Institucional.

Em casos limites de militarização na política doméstica, há o risco de guerra civil. Isto ocorre quando há divisões ideológicas e sociais insuperáveis, por meio do diálogo. A propósito, o Brasil vive intensa polarização, estimulada pelo próprio Presidente da República. Daí os riscos que correm os militares quanto à sua responsabilização política quando aos desvairos do governo. A indicação de militar para o cargo representa riscos de quebra da legalidade, desvio de finalidade, moralidade, impessoalidade, entre outros.  Para além disto, há riscos de obstrução à Justiça, abusos nos serviços de inteligência, falta de transparência dos atos administrativos.

A mídia tem relatado inúmeros episódios de abusos cometidos pelo atual governo na utilização do cargo da presidência para fins pessoais. Há atos que caracterizam improbidade administrativa, desvio de finalidade mais que configuram hipótese de impeachment. O atual Ministro do Gabinete de Segurança Institucional chegou inclusive a desafiar a autoridade da Justiça ao declarar que não cumpriria ordem judicial de entrega de celular do presidente da República, como se o presidente estivesse acima lei. Houve informes que de houve inclusive intimidação da autoridade do Poder Judiciário, no caso o Supremo Tribunal. Há inevitavelmente o risco de expansão desmedida de atos classificados como “segredo de estado”, dificultando-se o controle jurisdicional sobre a administração pública. Para alguns, sustenta-se a tese de que “militar da reserva é civil”, como tal defende o ex-Presidente Michel Temer.[2] Discordo deste entendimento. Esta visão é retrógada, baseada no entendimento da cooptação de militares no jogo político, algo nefasto à consolidação da democracia em nosso país. A história brasileira é recheada por golpes militares. Por isso é preciso apender com a história, para se evitar a barbárie e a tragédia.

A Constituição de 1988 não estabelece os contornos para o controle civil das forças armadas, com a vedação à participação militar em governos civis.  Ora, o militar ainda que da reserva sempre será militar. A utilização de terno e gravata não apaga a alma da farda e coturno. O militar da reserva, em um país como o Brasil, possui elevada carga simbólica e de influência política. O militar da reserva, ainda que não tenha mais vínculos formais com a instituição militar, possuiu vínculos informais e desfruta de certo prestígio pessoal (poder simbólico).  Ainda mais em países poucos maduros institucionalmente a força dos militares é maior. Por isso, é cooptado por agentes políticos. Mas, esta cooptação de militares pelo Presidente da República é ruim para a reputação das forças armadas. Grandes estadistas perceberam graves riscos relacionados à manipulação das forças armadas. A militarização de governos no Japão e na Alemanha conduziu à segunda guerra mundial.

Em síntese,  é necessária a percepção dos perigos à democracia decorrentes  da militarização na política doméstica e de a nação de não contar com um exército não profissional.  E para apreendermos com a história do Brasil, vivemos por décadas um regime de ditadura militar, decorrente de golpe de estado patrocinado por forças políticas e as forças armadas. Durante este período, os serviços de inteligência foram utilizados para práticas abusivas contra cidadãos, inclusive práticas de terrorismo de estado foram praticadas. Sobre o tema da influência política do exército na política doméstica no período da ditadura consultar: Cardoso, Fernando Henrique. A construção da democracia: estudos sobre política. Rio de Janeiro, 2020, pps. 178-179. Neste livro, o autor explica o controle da política pelo exército durante o período do regime militar.

Ao Conforme o autor: “Não foi um modelo deste tipo (“com a participação de partidos políticos no governo), entretanto, que as Forças Armadas implementaram: assumiram, como objetivo político, é certo, o reforçamento do Executivo, previsto pelo projeto político governamental, mas puseram-no sob seu controle direto: modificaram, por exemplo, o modo de funcionamento da casa militar e da casa civil da Presidência da República, aumentaram o controle do Conselho de Segurança Nacional e, dentro dele, da Secretaria Geral, criando o Serviço Nacional de Informações, estabeleceram setores de segurança nacional nos ministérios e autarquias, em suma, ligara mais e mais os órgãos de planejamento do Executivo aos das Forças Armadas e especialmente ao Estado-maior”.[3] Enfim, como explica o autor isto foi o embrião da política de segurança nacional alimentada com o fortalecimento do Poder Executivo e participação de militares no governo. O que é horripilante é os fatos atuais lembram a fala do autor a respeito ao período de 64.  E, ainda, a história brasileira revela a infeliz parcela do exército ardoroso da política de defesa subordinada aos Estados Unidos, na linha apregoada geopolítica pelo General Couto e Silva.

Para os Estados Unidos, é conveniente e oportuno reduzir o papel das forças armadas no hemisfério sul à função de polícia e combate ao narcotráfico.

Não interessa aos Estados Unidos, por óbvio, o fortalecimento das forças armadas latino-americanas. O grave problema é o Brasil fazer este jogo dos Estados Unidos, em sua política de defesa e sua política externa.

O Brasil se apequena ao se limitar a projeção de poder militar para dentro do país, entrando na política doméstica e de segurança pública. Por isso, é necessária a projeção de poder nacional para fora do território brasileiro. Precisamos cuidar, com excelência, do espaço marítimo e espaço aeroespacial. Cuidar da geoestratégica de defesa nacional, para além das fronteiras brasileiras. Somos espionados pelas grandes potências, porém não temos capacidade de coletar sinais de inteligência dos outros países. O sistema de inteligência nacional é pervertido ao ponto de se limitar sua capacidade à coleta de sinais de inteligência sobre a vida de cidadãos brasileiros. E o que é pior é utilizado para fins pessoais e políticos. Por isso, o sistema de inteligência nacional também está a merecer reformas estruturais de modo a ser efetuado o controle democrático e maior transparência em sua atuação. As maiores potências estrangeiras fazem este jogo com eficiência e maestria. É o jogo dos grandes na política global: Estados Unidos, Rússia, Reino Unido e, recentemente, a China. Todos estes países possuem bases navais, militares e embaixadas em todo o globo. 

Novos tempos demandam novas doutrinas militares e geopolíticas adequadas à grandeza continental do Brasil, mediante uma política de defesa e política externa independente. Por isso, entendo que a visão da defesa nacional do Brasil deve ser liderada por um civil e não por um militar, até para evitar eventuais conflitos de interesse internos nas forças armadas.

Em síntese, a profissionalização das forças armadas requer o respeito às regras de contenção à participação em governos civis. Os Estados Unidos vivenciaram um período de militarização de sua política externa, nas últimas décadas, algo que nefasto para o país.  O Brasil está vivendo a militarização de seu governo, algo péssimo para a democracia e reputação do exército. Neste aspecto, a República do Brasil requer a observância de responsabilidade institucional quanto aos destinos do país.

A militarização da Presidência da República, bem como os abusos de poder presidencial frequentemente noticiados pela mídia, demanda respostas mais efetivas das instituições responsáveis pelo controle de desvios na administração pública. Em síntese, é fundamental o controle parlamentar e jurisdicional sobre a política de nomeação do Presidente da República para o Gabinete de Segurança Institucional. Trata-se um ato administrativo subordinado aos princípios vinculante da administração pública.

Além disto, respeita-se o prestígio das forças armadas em nosso país, mediante garantias de distanciamento “higiênico” com a Presidência para riscos eventuais riscos de contaminação tóxica por abusos cometidos no cargo, inclusive passíveis de risco de impeachment.  É indecorosa a busca que o Presidente busque “comprar” apoio político de forças militares, bem como para legitimar seu governo. Por tudo isso, é fundamental a reforma do sistema de contenção da presença de agentes militares (da ativa ou da reserva), em governo civil.

É urgente uma Emenda Constitucional, aprovada pelo Congresso Nacional, para corrigir graves distorções de governo que ameaçam as instituições democráticas, com a imposição da proibição da nomeação de militares da ativa e/ou da reserva em governo civil, para se evitar a prática de nomeação de militares como “moeda de troca” de apoio das forças armadas, com a exploração do prestígio das forças armadas.

Esta reforma é necessária para se efetivar o princípio do controle civil sobre as forças armadas, algo basilar em democracias avançadas. A participação excessiva de militares em governo civil é sintoma de subdesenvolvimento, o Brasil precisa amadurecer institucionalmente.   


[1] Sobre o tema, ver: Scorsim, Ericson. Neomilitarismo, desmilitarização do governo, contenção da influência política das corporações militares e a concepção civil de defesa nacional. Princípio do controle civil das forças armadas: a arma da democracia; Scorsim, Ericson. Em defesa da maximização do controle civil das forças armadas e do seu profissionalismo. A necessária compreensão da questão democrática e militar, Scorsim, Ericson. Balanceamento e contenção de poderes do exército, marinha e aeronáutica: a necessária reforma do sistema de defesa nacional para conter a influência política das forças armadas nos destinos do Brasil. Publicados no Portal Direito da Comunicação, www.direitodacomunicacao.com.

[2] Temer, Michel. A escolha. Como um presidente conseguiu superar grave crise e apresentar uma agenda para o Brasil. São Paulo: Noeses, 2020. Segundo palavras do ex-Presidente Temer: “Enquanto Presidente, tive o melhor relacionamento com área de defesa, tendo nomeado um militar da reserva, o General Silva e Luna, para o cargo de Ministro da Defesa. Um militar da reserva é um civil, não é? (obra citada, p. 157).

[3][3] Obra citada, p. 168.